Guilherme Moraes
Dois anos após o lançamento de Harry Potter e a Câmara Secreta, o terceiro filme da saga chegava aos cinemas, dessa vez, mostrando a outra face desse mundo mágico. Se nos dois primeiros longas-metragens, em especial no primeiro, Chris Columbus apresentou o lado fascinante e alegre desse universo, em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, Alfonso Cuarón introduz o lado sério e sombrio que irá tomar conta da saga a partir daqui.
Dando continuação ao seus antecessores, Harry (Daniel Radcliffe) descobre que um dos seguidores mais fiéis de Voldemort fugiu de Azkaban, com o objetivo de se vingar de Potter pela queda de seu Lorde. Os personagens Sirius Black (Gary Oldman) e Remo Lupin (David Thewlis) aparecem pela primeira vez na franquia, assim como outros elementos que irão se tornar essenciais nesse universo, como os dementadores, lobisomens, animagos e vira-tempos. Apesar disso, o que torna essa obra tão especial e marcante é a maneira como tudo é introduzido, preservando o lado fantástico, mas levando ele pro lado obscuro, tornando o mundo mais macabro.
Cuarón utiliza os elementos audiovisuais de maneira interessante ao explorar o lado sombrio dessas criaturas, trazendo uma Fotografia mais fria e desoladora, principalmente na aparição dos dementadores. O diretor flerta com o Terror ao mostrar detalhadamente os monstros, a partir de closes na boca e na mão ossada do dementador, e na cabeça do lobisomem, ao lado da lua cheia enquanto ele uiva – algo clássico de filmes do gênero. Tudo isso é potencializado pela trilha sonora do lendário John Williams, que parece ter saído diretamente de filmes de Halloween. Além disso, Alfonso Cuarón torna a figura de Sirius Black quase mítica até ele aparecer pela primeira vez, como se ele fosse uma assombração, podendo estar em qualquer lugar do castelo.
Para além da mudança de atmosfera em relação aos dois primeiros, esse também começa a se desapegar da fidelidade dos livros. Não que os antecessores fossem totalmente fiéis, mas eles claramente buscavam ao máximo trazer da obra original, enquanto o Prisioneiro de Azkaban entende que não irá conseguir transpor tudo, e se adequa a uma ideia fílmica. Nesse sentido, a fita é mais fiel ao tom do manuscrito ao fazer a transição do inocente e fascinante para o sério e perigoso, sem esquecer os momentos de ternura; porém, essas passagens são utilizadas para dramatizar seus personagens, como a cena de Harry e Lupin conversando sobre Tiago e Lílian, e as brigas de Rony e Hermione.
Vale destacar como o trio principal ganhou profundidade a partir dessas dinâmicas. O longa começa com Harry fugindo da casa de seus tios, com quem ele nunca sentiu parentesco algum, e ao decorrer da história, enquanto passa a saber de seu passado e do de seus pais, encontra verdadeiramente a sua família com Sirius e Remo e consegue encontrar a figura de seu pai, Tiago, em si mesmo quando invoca o feitiço do Patrono. Aliás, esse é outro ponto interessante, afinal ele só consegue conjurar a magia quando pensa em uma lembrança alegre com aqueles que considera família e, quando ele finalmente conhece o seu padrinho, a ligação deles é instantânea e se torna tão forte que ele conjura um Patrono tão reluzente que espanta centenas de dementadores.
A relação de Rony e Hermione, ainda que menos destacada que a de Harry com Lupin e Black, também começa a ganhar profundidade e a dar abertura para as brigas por ciúmes que viriam a ter na sequência. A primeira cena dos dois já dá a tônica do que esperar deles durante o resto do filme, pois, logo de cara, eles já estão brigando, contrastando com a relação de ambos com o Harry, que é bem mais amigável. Esses dois são o que mantém o filme em uma pegada infanto-juvenil e que melhor explora o seu lado coming-of-age, visto que, enquanto Daniel Radcliffe explora muito bem a psique de seu personagem, Rupert Grint e Emma Watson são ótimos nessas situações típicas adolescentes como as brigas infantis, o embaraçamento depois de darem as mãos, o contato físico constante e até o drama que Rony faz quando machuca a perna.
Não dá para falar da franquia sem citar a sua autora e as polêmicas que ela começou a se envolver. Desde o final de 2019, a escritora J.K. Rowling passou a ser ‘cancelada’ por suas falas e posicionamentos descaradamente transfóbicos, o que, obviamente, abalou toda a comunidade de fãs da saga; alguns conseguiram seguir com a adoração, mas outros abandonaram o barco, afinal era uma decepção muito grande ver a pessoa idealizadora de um universo que prega amor e família, propagando discursos de ódio na realidade.
Nesse contexto, algumas pessoas decidiram promover boicotes às suas obras e em especial a franquia Harry Potter. No entanto, apesar de ser um protesto legítimo, ele se mostra ineficiente, e além disso, vilaniza e culpabiliza aqueles fãs que continuam consumindo produtos da franquia, o que é um problema, pois coloca esse público e a saga no mesmo ‘balaio’ que a escritora, resumindo o debate e tornando raso. O que há de ser feito então? Ignorar? De forma alguma, mas analisar criticamente a relação entre o autor e a obra, e como ela se comporta no mundo.
A relação entre autor e obra é parecida com a relação de criador e criatura, pois existe um pouco do criador na criatura e vice-versa. No entanto, quando a obra é publicada, ela passa a ser maior do que seu próprio autor e se torna de todo mundo, possibilitando inúmeras interpretações e criando relações entre outras pessoas com aquela obra. Além disso, desconsiderá-la pelas problemáticas em relação ao seu autor, é também desconsiderar enquanto Arte, tornando-a um produto que pode ser descartado, sem levar em consideração o aspecto estético e também o trabalho de inúmeras outras pessoas que vivem desse universo, o que reafirma que, Harry Potter já é muito maior que sua autora.
Tudo isso não quer dizer que é preciso esquecer o que a J.K. Rowling tem propagado, pois a sua obra é carregada de sua ideologia. Porém, leva-la ao ostracismo, a isenta de debate crítico e ignora o problema, portanto, faz a manutenção de um mundo problemático. Além disso, seria idealista demais e, até mesmo, um pouco alienante dizer que precisa separar o artista da obra, afinal, se não podemos julgar aqueles que ainda são fãs da saga mesmo após a polêmica, também não podemos com aqueles que a abandonaram, já que, como dito anteriormente, cada um tem uma relação diferente. Ademais, é uma ideia desumanizadora por ver a criação como algo fora do mundo, quando, na verdade, ele é criado a partir de uma maneira como a autora enxerga a sua realidade e se integra e molda esse mundo.
Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, lançado há 20 anos atrás, deu início ao lado sombrio da saga, mas que para a surpresa de todos os fãs, se tornou mais sombrio na vida real com os discursos de ódio da autora. No entanto, a própria escritora se mostrou não estar no mesmo patamar de suas obras, que criou uma legião de fãs ao redor do mundo que definem para si o que todo esse universo significa. Em resumo, apesar das problemáticas em relação à J.K. Rowling, o terceiro longa da franquia é um ótimo filme que faz a transição do mundo fascinante e divertido para uma roupagem mais soturna, sem perder de vista o lado mágico.