Vitória Silva
O céu não é o limite para Billie Eilish. Aos 20 anos, a jovem californiana já coleciona 7 gramofones dourados, incluindo o da almejada categoria de Álbum do Ano, por seu disco de estreia. Mais recentemente, ainda celebrou um prêmio da Academia para a sua prateleira, sendo a primeira artista nascida nos anos 2000 a conseguir esse feito. No show business desde 2016, tudo que Billie Eilish Pirate Baird O’Connell toca vira ouro – e não é nem brincadeira. Sua grande máquina de sucessos, movimentada em conjunto com seu irmão FINNEAS, foi a responsável por lhe render a aclamação de WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO?.
Após percorrer o lado mais sombrio de seus próprios pensamentos e sonhos perturbadores, Billie finalmente aterrissa em terra firme. Se emancipando dos delírios da juventude e a pose irreverente da adolescência, a cantora de fato assimilou a entrada da vida adulta em Happier Than Ever. E o ponto de partida do novo disco já apresenta essa comprovação: “Estou ficando mais velha, acho que estou bem/Gostaria que alguém tivesse me dito que estaria fazendo isso sozinha”.
Em meio a essa realização, a jovem artista também se depara com uma realidade em que, agora, aquilo que ela costumava gostar de fazer se tornou apenas um simples ofício. Caindo a mesma grande ficha de toda uma juventude obrigada a crescer em meio a sociedade do cansaço do século 21, Billie entende em Getting Older que a constante cobrança por produtividade e alcance do sucesso nos leva ao esgotamento completo, tanto fisicamente quanto no âmbito de nossas motivações pessoais.
Acompanhar a jornada da artista pela concretude que a maturidade apresenta é mergulhar em uma imersão de pensamentos, dominados pela geração Z que precisa lidar com uma avalanche de mudanças sem nem ser avisada previamente. Em meio aos tapas na cara do mundo moderno, uma decepção amorosa é a força motriz para a conquista de sua libertação. Outra loirinha já havia ditado a máxima: quebre o coração de uma jovem estrela do pop, e veja as músicas de sucesso que ela é capaz de fazer. E, aqui, Eilish segue o ensinamento à risca.
No documentário Billie Eilish: The World’s a Little Blurry, lançado em 2020, seu frustrante relacionamento com o rapper Brandon Adams havia sido apresentado como um fator desolador para suas vivências durante a turnê do disco anterior. Em Happier Than Ever, todo esse desapontamento acaba sendo transformado em força, mostrando uma Billie muito mais segura de si. Se em party favor a jovem cantora ainda precisava deixar mensagens na caixa postal implorando por um retorno de seu interesse amoroso, agora ela já assume o poder de simplesmente escolher quem deseja responder ou não.
Exalando uma confiança provocativa, a ex-loirinha escreve praticamente uma carta aberta ao antigo namorado em Lost Cause, apontando cada uma das quebras de expectativas que teve com ele, enquanto tira sarro de sua pose durona, fruto de uma masculinidade frágil cravada. “Eu costumava pensar que você era tímido/Mas talvez você não tivesse nada em mente/Talvez você estivesse pensando em si mesmo o tempo todo”. Isso ainda aproveitando o videoclipe da faixa para, talvez pela primeira vez, largar de seus surrealismos em troca de se divertir com as suas amigas numa típica festa do pijama.
Poucas coisas no mundo conseguem declarar melhor a dor da assimilação e a felicidade do livramento do que a faixa que também dá nome ao álbum. Se as pontadas anteriores não foram suficientes, Billie Eilish usa Happier Than Ever para aplicar o seu devido golpe fatal. A postura passiva no início da música vai minuciosamente abrindo espaço para uma explosão de sentimentos entalados na garganta. Assim, ela vocifera da forma mais honesta possível todas as dores decorrentes de uma paixão mal acabada, com o suporte de guitarras estridentes que fazem jus a artistas anteriores a ela que não tinham medo de mostrar a fragilidade de um coração partido.
Para se redimir com a cidade que ela clamou em alto e bom som que passou a odiar, Eilish lançou pelo Disney+ o documentário Happier Than Ever: Uma Carta de Amor para Los Angeles. Por meio de uma apresentação no teatro histórico do Hollywood Bowl, a artista passeia intimamente pelas faixas do disco, com apresentações que prestam uma homenagem ao local que a abriga desde sua infância. Relação essa que ex nenhum seria capaz de acabar por completo.
Ela pode tentar afirmar isso por diversas vezes ao longo do disco, mas talvez a cantora não esteja tão mais feliz do que nunca. A emancipação fantabulosa de Billie Eilish não é repleta apenas de autoconfiança, levando em consideração que encarar essa realidade em meio a uma indústria extremamente destrutiva são outros quinhentos. A Billie mais angelical e menos sombria do que vimos anteriormente presente na capa disco é denunciada pelas lágrimas que molham suas bochechas, mostrando o caráter dual de que o princípio que permeia seu novo trabalho ainda parece distante. Aquela felicidade que antes estava diretamente relacionada ao sucesso, agora encontra-se mais próxima de uma vontade de ter as luzes apagadas por um breve instante.
A perda de sua pureza interior é trazida à tona nos delicados versos de GOLDWING, apontando como o universo midiático usa das jovens celebridades em ascensão para depois descartá-las como meros objetos: “Eles vão reivindicar você como um souvenir/Apenas para te vender em um ano”. Provando que realmente saiu dos pesadelos de sua mente para confrontar os da vida real, a cantora ainda se aprofunda nos fantasmas que tanto tememos ter que confrontar, e que são dissecados em faixas como o single Your Power. Tem algo mais condizente com a realidade do que crises existenciais, abusos de poder, distorções sobre o prazer feminino e a ansiedade em relação a um futuro que parece nunca chegar?
O fato de se tornar uma mulher adulta quando todos os olhares do mundo estão voltados para você é um buraco bem mais embaixo do que qualquer uma pode estar acostumada, e o fatídico destino de outras artistas ainda não foi suficiente para servir como lição ao grande público. Not My Responsibility é inteira dedicada ao desabafo de Eilish diante das opiniões formadas especialmente em relação ao seu corpo. Em um monólogo questionador às diversas críticas que sofreu nesse aspecto ao longo de sua carreira, Billie ainda atinge o amadurecimento ao tirar de seus ombros a responsabilidade diante da opinião dos outros.
Em um comercial da Calvin Klein de 2019, ela já tinha afirmado que costuma usar roupas largas para que ninguém pudesse opinar sobre seus aspectos corporais já que não poderiam ver o que estava por baixo delas, provocando inúmeras críticas ao seu estilo. Colocando em prática o que assume no interlúdio, a artista se entregou a vestidos bem apertados e pouca roupa para um ensaio da revista Vogue UK. Como uma bomba-relógio, conseguiu acionar a falsa simetria da internet de que o realce de suas curvas teriam um caráter apelativo, diferente de quando ela optava por se esconder pela vergonha do próprio corpo a que era condicionada.
E sensualidade não poderia faltar para que Eilish cravasse de fato sua libertação interior. Assim, caminha desde uma poética bossa nova em direção aos sintetizadores explosivos enquanto clama a necessidade de ocitocina, ainda sem perder a irreverência que foi seu ponto de equilíbrio durante o período da adolescência. Uma nova Billie Eilish domina o espaço, mas sem deixar de lado as muitas realizações que fizeram parte de sua essência e crescimento perante o resto do globo terrestre.
O passeio nessa transição da juventude não seria o mesmo sem a produção de seu irmão FINNEAS. A união da dupla consegue fortalecer o lirismo das letras com a sonoridade que percorre diferentes gêneros e até mesmo compõe elementos da realidade, conforme ilustra o rosnado de seu pitbull Shark no início de I Didn’t Change My Number. Como se já não fosse suficiente, a cantora faz questão de retratar os sentimentos com clareza a partir das situações limite a que se coloca em seus videoclipes, honrando não só o seu talento musical como também a brilhante execução no audiovisual. Nada melhor para demonstrar a sensação de estar condenada às amarras provenientes da fama do que – literalmente – se colocar andando em meio a uma estrada com carros em alta velocidade.
Já se consagrando como a nova favorita do pedaço, era mais do que óbvio que seu novo projeto fosse fazer a limpa nas indicações ao Grammy 2022. No caso, ela conquistou 7 nomeações, incluindo categorias principais como Álbum e Canção do Ano. O mérito das conquistas de Billie Eilish não há de ser contestado, enquanto os questionamentos deveriam passar a serem voltados aos responsáveis por insistir em sempre colocá-la à frente de qualquer outro artista, sem mais nem menos. Essa ignorância da branquitude por trás das principais premiações até mesmo provocou o constrangimento da própria, quando ela dedicou seu gramofone de Gravação do Ano, em 2021, à cantora Megan Thee Stallion, justificando que ela era quem realmente merecia o prêmio, pela faixa Savage.
Em Happier Than Ever, Billie Eilish desce do pedestal a que tanto foi colocada, assim como é desarmada de todas as munições que havia usado para se blindar da perversa indústria musical – a mesma que atreveu-se a fazer parte e já não aguenta mais. O mundo que antes parecia um pouco embaçado, agora é enxergado com mais nitidez, lhe dando a ousadia de se abrir em um relato sincero que nos faz passear pelas profundezas de seu interior, e nos leva a nós mesmos. Se a ancoração na fria realidade do mundo moderno é sinônimo de satisfação, só poderíamos estar mais felizes do que nunca.