Guilherme Moraes
A terceira temporada de Hacks mantém o script das anteriores, com uma comédia metalinguística ancorada na amizade de Deborah Vance (Jean Smart) e Ava Daniels (Hannah Einbinder) que encontra, no drama pessoal da protagonista, a própria forma de fazer humor profissionalmente. Apesar das dinâmicas entre a dupla e das questões internas dos personagens funcionarem, a temporada demora para engrenar. Na dúvida se mantinham a fórmula vazia para gerar comicidade ou exploravam um caminho mais arriscado e profundo, os roteiristas deixaram boa parte da season inconstante. Por sorte, Lucia Aniello, Paul W. Downs e Jen Statsky reencontram o caminho do sucesso nos últimos episódios, o que garantiu várias indicações ao Emmy 2024, incluindo ao prêmio de Melhor Série de Comédia.
O final da segunda temporada deixou a impressão de encerramento, com Ava e Deborah seguindo caminhos separados, mas conquistando seus sucessos profissionais, melhorando como pessoas, superando alguns de seus problemas e consolidando uma bela amizade no meio do caminho. Então, era esperado que a nova temporada começasse organizando o tabuleiro para poder bagunçá-lo de novo. Nesse sentido, o primeiro episódio, Só para Rir, coloca-as distantes e muito bem profissionalmente, ainda assim, de alguma maneira, nenhuma delas está totalmente em paz com a situação. Dessa forma, a série não demora para juntá-las, pois sabe que a sua força está nas interações caóticas e cômicas entre a roteirista ativista e a comediante indomável.
A personalidade de Deborah, aliada à atuação implacável e cômica de Jean Smart, sempre foi o fio narrativo e condutor da comédia e do drama. Mais do que apenas a protagonista de Hacks, a personagem é a estrela da sua própria vida – o que quer dizer que tudo gira ao redor dela, expondo seu ego e individualismo. Ambos os traços já haviam sido explorados durante as duas primeiras temporadas, mas a terceira esconde um pouco esse lado para dar espaço às suas inseguranças, sonhos e arrependimentos.
A inconsistência que a season apresenta ocorre no meio dela: são poucos os episódios que contribuem na trama. É inegável que a temporada continua divertida e engraçada, mas o desenvolvimento é muito devagar e a sensação é de que toda a produção já estava no piloto automático, apenas repetindo uma fórmula que se baseia nas interações bem humoradas da dupla principal e não indo além de seu próprio método. Os episódios Um Dia e Entre no Clube, por outro lado, chamam a atenção. Eles não avançam muito na narrativa, mas expõem muito bem as inseguranças de Deborah e a fazem refletir sobre as falas problemáticas que ela mesma costumava fazer no passado.
Jimmy (Paul W. Downs) e Kayla (Megan Stalter) se tornam uma grande dupla nesta temporada, muito bem humorada, rendendo ótimas cenas. Enquanto Jimmy é mais sério e ‘certinho’ ao organizar os negócios, Kayla é aquela pessoa positiva que pensa fora da caixa, e essa dinâmica rende momentos divertidos. Um exemplo disso é quando ambos vão para um clube e apostam um dinheiro que não têm, apenas para conversar com a produtora. Uma pena que, no meio da inconsistência dos episódios, eles ficaram um pouco de lado; entretanto, nas poucas cenas em que apareceram, eles trouxeram muito humor e graça em cenários muito aleatórios.
Outra figura que perdeu espaço foi Marcus (Carl Clemons-Hopkins), que além de ter tido pouco tempo de tela, suas cenas não foram das melhores. Após o sucesso de Deborah no último ano, o público dela se ampliou e diversificou, e isso abriu portas para ela seguir um rumo diferente. Nessa perspectiva, Marcus é a personificação do antigo nicho, que deixa de ser a prioridade e precisa trilhar um novo caminho. O personagem é intrigante e consegue se desenvolver de maneira própria, diferente de todos os outros da série, mas isso faz com que ele fique isolado demais e tendo poucas dinâmicas com o elenco principal, tornando-o o elo mais fraco.
Por outro lado, Ava demonstra uma faceta interessante que indica seu desenvolvimento ao longo da série. A personagem de Hannah Einbinder deixa de ser aquela garota que nega e rechaça todas as atitudes problemáticas da sua chefe e passa a compreendê-la, sem perder sua veia militante, tornando-se uma mediadora do passado e presente. O penúltimo episódio, Sim, e?, é o que melhor expõe isso, com Ava entendendo que as piadas problemáticas que Deborah fazia eram fruto de seu tempo, uma maneira de se encaixar em um mundo predominantemente masculino e que ela enxergava como inofensivas. No entanto, ela não exime a culpa de Vance e mostra que a comediante precisa se desculpar e repensar sobre seu passado.
No geral, a jornada de Ava parece estreitamente ligada à protagonista, tanto com a relação conturbada com a namorada quanto às dúvidas sobre suas ideologias. Esse não é um ponto negativo; pelo contrário, pois potencializa o final da temporada. Contudo, a sensação é a de que seu arco narrativo depende demais de Deborah, fazendo com que o resto seja pouco desenvolvido, como o fim do namoro, que parece ter sido esquecido. Apesar disso, é muito divertido – como já era nas outras temporadas –, as dinâmicas da dupla são sempre cômicas e profundas, com as duas se desafiando e saindo de suas respectivas zonas de conforto.
O último episódio é o ponto alto da temporada e recebeu, justamente, indicações aos prêmios de Melhor Roteiro em Comédia e Melhor Direção em Comédia no Emmy 2024. À Prova de Balas consegue traduzir a complexidade que envolve a personagem de Deborah, ainda que, por vezes, seja didático demais. O roteiro faz do racha entre Deborah e Ava uma explosão de tudo o que as personagens haviam passado na temporada. A direção de Lucia Aniello valoriza os sentimentos de Ava por meio da câmera: ela se movimenta para enfatizar a fúria e fica parada para destacar a mágoa e a dor.
A volta dos fantasmas do passado fez com que Deborah melhorasse como pessoa ao longo da temporada, e fosse recompensada com o emprego dos sonhos. No entanto, quando chegou ao topo, ela deixou que isso trouxesse à tona suas maiores falhas. Essa é a temporada que melhor explora a psique da personagem, que não se desenvolve de maneira tipicamente linear, mas mais humana, que erra cada vez mais na mesma medida em que evolui. Apesar dos problemas da season, é de se elogiar a coragem do plot final ao colocar em xeque a maior força de Hacks, que é a amizade de Deborah e Ava. Contudo, sabemos que não é possível se manter em alta sem assumir alguns riscos.
No que diz respeito à técnica, a série mantém seu padrão de qualidade, merecendo suas indicações em categorias como Melhor Cabelo, Melhor Figurino e Melhor Maquiagem. Hacks, desde a primeira temporada, fazia uso desses elementos em favor da narrativa, caracterizando seus personagens. Todo o visual de Ava já a colocava como uma pessoa desajeitada mas, ao mesmo tempo, moderna e divertida; Deborah se mantinha exuberante e poderosa, entretanto, quando estava sozinha, retirava sua peruca e exibia as suas fragilidades e inseguranças. Foi o emprego dessas técnicas que as qualificam – a maneira como são usadas revelam facetas dos personagens que não precisam ser ditas, são entendidas e sentidas.
Ainda que não seja a melhor temporada de Hacks, devido a sua inconsistência, a terceira parte ainda é muito boa e mereceu suas 16 indicações ao Emmy 2024, em que oito dessas estão entre as principais categorias. Historicamente, a série já acumula 48 indicações e seis prêmios. Dentre eles, dois foram para Jean Smart como Melhor Atriz em Série de Comédia, categoria na qual foi novamente indicada e tem grandes chances de vitória.
A terceira temporada da série chegou cercada de desconfianças e, apesar dos vacilos, fez valer a pena. As atrizes principais não deixam de nos fazer rir e mantêm Hacks em um padrão muito bom, com Hannah Einbinder melhorando cada vez mais e alcançando sua melhor interpretação no episódio À Prova de Balas. Ainda que o meio da temporada tenha sido um pouco repetitivo, o final consegue nos empolgar trazendo muito drama e humor, e encerra colocando pólvora no relacionamento de Deborah e Ava. Resta saber se a quarta temporada irá reconstruir a amizade ou edificar a nova rivalidade.