Guilherme Machado Leal
Um artista, ao lançar o seu primeiro álbum de estúdio, possui a difícil tarefa de se superar no trabalho seguinte. Isso porque a mídia, quando encontra alguém novo na indústria, tende a se perguntar ‘será ele(a) one hit wonder?’ ou afirmar ‘o sucesso dele(a) é passageiro’. Nesse sentido, exceções mais recentes – como o Future Nostalgia, de Dua Lipa, e o Vício Inerente, de Marina Sena –, são bons exemplos de que um cantor pode ampliar a bagagem de mundo do fã que o acompanha. O ano de 2021, por esse lado, foi um divisor de águas para Olivia Rodrigo; ao mesmo tempo em que a colocou no estrelato, também testemunhou o seu íntimo, a levando para outro patamar.
Quando lançou o SOUR, o seu primeiro ‘filho’, a ex-Disney deu voz às inseguranças que assolam os adolescentes. Coração partido, sentimento de inveja e a desconexão com o mundo que os cerca foram temas abordados no seu lado azedo. Agora, dois anos depois, ela retorna ainda mais autêntica e ‘segura com o seu taco’ com GUTS. Entendendo que a sua unicidade é um porto-seguro para que os jovens se sintam à vontade de expressar as emoções mais excêntricas, o período de transição entre o Ensino Médio e a vida adulta consegue ser compreendido de uma forma menos dolorosa através da Arte.
Interessada em polissemias tanto na composição de suas letras – a exemplo do duplo sentido na faixa get him back! –, quanto no título do álbum, Rodrigo traz em seu segundo trabalho uma maior maturidade lírica. É verdade que, em um primeiro momento, a semelhança entre os dois discos tenha deixado alguns fãs receosos, já que ambos possuem uma capa de cor roxa com a cantora apresentando o nome do projeto. No entanto, mais que uma extensão de seus devaneios anteriores, GUTS é o amadurecimento e o atestado de que a artista veio para ficar.
A faixa de abertura sintetiza o lugar em que a jovem está: tipicamente perfeita, ela admite ao seu público que também possui raiva e se descontenta com a pressão que o seu pequeno, mas já estrondoso legado, carrega. Em all-american bitch, as influências de rock são construídas com o decorrer da canção, dando o tom de como será a viagem pelos 19 anos da artista. Utilizando um trecho da música Pretty When You Cry de Lana Del Rey, sua sinceridade nunca foi tão relacionável. Por se encaixar nos padrões de beleza, ela não deve se queixar de suas inseguranças, mas quem disse que Olivia Rodrigo liga para o que você pensa?
Como conhecido pelo público, a trajetória da artista foi marcada pelo seu passado na Disney. Outras cantoras, como Demi Lovato, Miley Cyrus e Selena Gomez também cresceram sob os holofotes da mídia e tiveram dificuldades ao desvencilhar a imagem de modelo para assumirem suas personalidades reais. Entretanto, o que diferencia a voz de deja vu de suas veteranas é que o caminho está livre. Por esse lado, ao cantar em bad idea right? que tropeçou e caiu na cama de seu ex, Olivia Rodrigo se conecta com o seu público justamente por ser uma garota falando – sem qualquer tipo de eufemismo – sobre recaídas amorosas.
Uma das maiores comprovações de sua honestidade é a forma como a vida pessoal da compositora se entrelaça à Arte que produz. Para um escritor, experiências de vida possuem um significado a mais: são elas que transformam uma simples curiosidade em belas palavras. Amante do conhecimento, Olivia Rodrigo fez aulas de poesia na faculdade, que deram origem a um poema chamado lacy. Sendo a música mais criativa do segundo álbum, ela se encanta com uma figura feminina na mesma proporção em que à inveja. Assim, é perceptível o desenvolvimento artístico da cantora ao se mostrar capaz de vestir uma capa que não a pertence, apenas para brincar com palavras, como a boa compositora que é.
Em GUTS, a artista decidiu tirar tudo menos o rock. Com o uso de guitarras e sonoridades que remetem ao gênero musical, ela conversa sobre ser desajustada socialmente, algo que passa pela cabeça de qualquer pessoa nos anos universitários. Aliás, é válido reconhecer a capacidade de identificação que a cantora traz em seus versos. Por exemplo, na faixa ballad of a homeschooled girl, Rodrigo subverte a imagem agradável que passa ao afirmar que é uma vergonha social. Quando canta, “A festa acabou e eu não sou divertida” e “Toda vez que eu boto o pé pra fora de casa é suicídio social”, o primeiro pensamento que vem à mente é: ‘ela é tão eu!’.
Fã de carteirinha das produções do local em que trabalhou a adolescência inteira, não é coincidência ouvir as canções desse projeto e se lembrar imediatamente de filmes teens dos anos 2000. No melhor estilo Anna Coleman, de Sexta-Feira Muito Louca, os instrumentos escolhidos para o segundo capítulo da cantora, – como as baterias na deliciosa love is embarrassing –, evidenciam a imagem que ela quer passar: nem muito pop ou ‘rockeira’ demais, sem se colocar em gavetas sonoras, experimentando o que a sua paixão pela Música tem a acrescentar em sua Arte.
No seu álbum de estreia, as baladas românticas chamaram atenção pela intensidade lírica de uma jovem de apenas 17 anos. A partir das composições francas que deram a identidade do SOUR, ficou claro que a característica principal da artista era falar sobre o término de uma relação ‘sem papas na língua’. No entanto, quando se trata do lado mais emocionante do GUTS, o efeito não é o mesmo: aqui, as canções se tornam repetições de assuntos já abordados. Como em logical, que se assemelha a uma continuação de enough for you. Além disso, não há um refrão marcante, ou uma ponte que tenha, ao menos, o impacto de drivers license.
Aliás, a canção, que colocou os olhos do mundo para o que Rodrigo tinha a dizer, segue como um dos pontos altos de sua carreira. Não à toa o maior sucesso do projeto, em números de streamings, é vampire, o carro-chefe da nova era. Remetendo à sensação que tivemos com a carteira de motorista da cantora, o lead-single de forma alguma representa a história que ela quer contar, mas é um lugar seguro para aqueles que admiravam os fortes versos proferidos pelo lado mais intimista do seu primogênito.
Ao repetir a parceria com Dan Nigro, produtor e co-compositor dos trabalhos de Olivia Rodrigo, a aclamação é garantida. Na faixa de encerramento do álbum, somos transportados para o maior medo de todos que estão nos anos iniciais da faculdade: a pressão de se tornar um adulto excepcional. O sonho adolescente, aquele dito pela primeira vez em brutal, possui agora uma conclusão. Ela está se encaminhando para crescer, e nós sabemos o quanto isso dói. Não deveria, mas a intérprete se desculpa por não ser o modelo perfeito a ser seguido.
Esse é o ponto que confere particularidade ao seu trabalho: a chance de errar. Fazer tempestade em copo d’água? Sim. Se entregar a um amor que não aproveitará as suas potencialidades? Também. Não pensar antes de se apaixonar por alguém e escrever um álbum inteiro sobre isso? Opa! Tudo isso a coloca ainda mais em um lugar de conforto para quem vive cada uma dessas coisas, porque esse é um dos papéis da Arte, colocar em versos o que sentimos sem medo do julgamento alheio. E a artista parece fazer isso com maestria.
À essa altura, questionar o talento de Olivia Rodrigo no quesito composição se tornou incompreensível. Você pode não gostar, pode até espernear, mas é inegável que a conversa em torno do que ela tem a dizer é, no mínimo, curiosa. Isso se dá pela autenticidade de seus sentimentos que, ao serem gritados a plenos pulmões por uma multidão, ganham força para lidar com os anos futuros. Ela não reinventou a roda, pelo contrário, reconhece as suas influências e, a partir delas, cria a sua própria visão de mundo.
“Eu vou assoprar as velas, feliz aniversário para mim/Tem toda sua vida pela frente, você só tem dezenove anos/Mas temo que eles já tenham todas as melhores partes de mim/E sinto muito por não conseguir ser seu sonho adolescente para sempre”
Típico dessa época da vida, a forma como a ‘MC Detran’ – para os mais próximos –, se expressa é impossível de prever. Se ela olhará para tudo que construiu até aqui e terá vergonha, não sabemos. No momento, o agradecimento pelo que já foi feito é o que fica, por não ter medo de expor ao mundo os seus pensamentos mais intrusivos acerca das convenções sociais em que nós jovens somos colocados e fazer com que colocar uma lupa no imaginário da juventude seja tão libertador. É por isso que escutamos a sua música.
Após 39 minutos e exatos 18 segundos, a viagem pelos 19 anos de Olivia Rodrigo foi prazerosa. A história que contou teve início, meio e fim. Ao vomitar toda a sua raiva – tradução mais literal possível do que significa a expressão Spill Your Guts –, a cantora pode, finalmente, se desapegar do medo de não ser boa o suficiente. As pessoas ainda querem saber o que ela tem a dizer, e mais: querem cantar ao lado dela sobre as frustrações que a vida adulta e amorosa carregam. A juventude contemporânea está a salvo, porque tem nela um ser humano, com qualidades e defeitos, e não um modelo a ser seguido.