Ellen Sayuri
Sabe quando você está sem nada para fazer e decide assistir uma série, mas não sabe se continua alguma ou começa outra? Eu estava assim e depois de muito tempo vasculhando o catálogo da Netflix, escolhi uma original dela chamada Glow, e me surpreendi muito. Criação de Liz Flahive e Carly Mensch e inspirada em um programa chamado Gorgeous Ladies of Wrestling (Garotas Lindas da Luta Livre) – GLOW, criado por David McLane nos anos 80.
Lançada em 2017, a série possui 3 temporadas até o momento e já recebeu dezoito indicações a premiações importantes, tanto no Emmy de Artes Criativas, nas categorias de arte e técnica e no Emmy Awards, uma das principais premiações da Televisão. Ganhou três vezes, sendo duas sendo na categoria de Melhor Coordenação de Dublês para uma Série de Comédia ou Programa de Variedades em 2018 e 2019 e o outro na categoria de Design de Produção para um Programa Narrativo (30 minutos ou menos) em 2018.
A série acompanha Ruth (Alison Brie), uma atriz que não consegue nenhum papel, até que recebe uma proposta para participar de um programa de luta livre feminino que busca por “mulheres não convencionais” chamado Glow, feito pelo diretor Sam Sylvia (Marc Maron). Sua ex-amiga Debbie Eagan (Betty Gilpin), com quem teve alguns conflitos, também entra no elenco, forçando ambas a serem profissionais para não deixar seus maus entendidos interferirem no trabalho.
A primeira e a segunda temporada se passam em Los Angeles e são focadas na produção e na construção dos personagens para a luta. Mostrando os ensaios e preparação de movimentos que vão usar no ringue, Glow evidencia também as dificuldades que um programa novo enfrenta.
Já a terceira temporada se passa em Las Vegas e tem um rumo diferente. Neste ano, as lutas não têm tanto destaque e o foco se direciona para as vidas pessoais das personagens. Como Glow já é um programa consolidado, mudanças narrativas como essa levam o show para longe da mesmice.
Ao inovar nesta última temporada lançada, Glow mostra que pode explorar e ir além das lutas, sem deixar de ser interessante. Essa mudança pode ser vista com bons olhos, pois personagens que tinham apenas um episódio para desenvolver a sua história agora tem mais tempo. Exemplo disso é Sheila (Gayle Rankin), uma das mulheres mais intrigantes da narrativa que finalmente teve a atenção devida e todo o seu desenvolvimento sendo trabalhado aos poucos.
Debbie também teve destaque, se tornando parte da produção do programa. Mas mesmo estando na mesma posição de outros produtores, sua opinião nem é sequer escutada, como quando surge a proposta de renovar o programa e ela não quer, Bash (Chris Lowell), outro produtor, não se importa e quer continuar a todo custo. Ela também é subestimada. Seu novo namorado a leva em jantares de negócios, imaginando que não esteja entendendo nada, para apenas “deixar o ambiente mais bonito”. Depois vemos que além de entender, Debbie soube aproveitar as informações obtidas, mostrando seu potencial e sendo mais que apenas um rosto bonito.
A reconciliação entre maternidade e trabalho tem se mostrado difícil para Debbie, que viaja para Los Angeles para ver o seu filho quando pode. Nessa situação, a série também evidencia que a mãe é mais cobrada do que o pai para a criação de um filho. O machismo também é escancarado no fato das mulheres não terem opção de escolha e precisarem sacrificar algo para se manter em Las Vegas, diferente dos homens que podem sair sem nenhuma consequência – tipo de coisa que, que cá entre nós, ainda está presente até hoje. A Debbie de Betty Gilpin recebeu indicação por 3 anos seguidos no Emmy na categoria Melhor Atriz Coadjuvante em Série de Comédia, incluindo neste ano de 2020.
No meio de lutas e personagens criados para servir de entretenimento, os estereótipos são um ponto marcante desde a primeira temporada, principalmente para as não brancas. Por exemplo, Archie (Sunita Mani) é designada para interpretar uma personagem terrorista e Jenny (Ellen Wong) é cheia de orientalismo, ambas demonstrando desconforto com esses estereótipos ao longo da série, mas nada é mudado. Mesmo sendo ambientado nos anos 80, podemos ver que nas produções audiovisuais atuais ainda há muitos personagens estereotipados, apesar de estarem surgindo mais discussões sobre representatividade e a sua importância.
É no mínimo curioso o Sam querer mulheres fora do padrão para fazer parte das lutas, e ele faz isso apenas para ter audiência, porque quem tem o protagonismo são a Ruth e a Debbie. Isso é o retrato de vários filmes e séries em que a representatividade não tem o protagonismo verdadeiro e é usada apenas como elemento comercial.
Em um episódio da terceira temporada é proposto uma troca de personagens, escancarando as diferenças de tratamento entre uma pessoa branca e uma pessoa não branca e o emprego de estereótipos. A partir disso, nos questionamos: o que pessoas não brancas precisam se submeter para conseguir um papel? Quais personagens são criados para elas e o porquê precisam ser tão genéricos e desrespeitosos?
O cassino onde se passa a terceira temporada me deixou extremamente desconfortável, apresentando uma generalização de culturas respeitosa. Também teve esse sentimento a personagem de Jenny, que demonstra ao longo dos episódios o seu incômodo, até que desabafa sobre como aquilo era um pesadelo, afetando bastante a sua amizade com a Melanie (Jackie Tohn), que faz muitas “piadas” sobre ser amarela. A personagem não entende como isso é errado, demonstrando que mesmo que você pertença a uma minoria, você ainda pode carregar preconceitos que agridam outras minorias.
Nos ringues, a personagem de Jenny se chama Biscoito da Sorte, associação de personagens amarelos com o alimento que ocorre também na série Pequenos Incêndios Por Toda Parte. Mesmo sendo produções com temáticas e épocas diferentes, ambas tentam passar a noção de que isso é preconceituoso. Para mim, Glow exagera os estereótipos de propósito, para reforçar o quão problemáticos são e mostra de maneira clara como as pessoas se sentem ao serem bombardeadas com esses preconceitos.
Também foram abordados questões sobre a comunidade LGBTQ+ no destaque dado à relação de Yolanda (Shakira Barrera) e Archie (Sunita Mani), com ela no final assumindo para si mesma quem ela é, assim como Bash (Chris Lowell), que também teve um pouco da sua sexualidade explorada. Bobby (Kevin Cahoon), um dos personagens novos dessa temporada, foi sem dúvidas uma das melhores surpresas. A festa organizada por ele e Debbie foi linda, apesar do final desastroso.
Glow nos mostra que pode ir além ao fazer uma temporada diferente e explorando mais as individualidades dos personagens. Este ano se preocupa em mostrar como as pessoas se sentem em relação ao que está acontecendo, não apenas as situações, criando ainda mais empatia com o público.
A interpretação do elenco convence, nos fazendo rir, mas também chorar. Com tantos acertos, as expectativas para a quarta e última temporada estão altas, espero que feche a série com chave de ouro, dando um final que faça jus a toda trajetória acompanhada.