Gabriel Gatti
A padronização da beleza é um fenômeno muito comum e normalizado na sociedade. Ao longo das décadas, o rótulo daquilo que é bonito ou feio vai se alterando, mas sempre continua vigente para julgar quem vai aparecer diante das telas. Se esse cenário já é tão presente nos dias de hoje, imagine ir ao cinema há 90 anos e, ao invés de ver pessoas como o rosto entupido de pó de arroz, se deparar com um grupo de artistas com deficiência. Esse é justamente o caso de Freaks, um clássico de Tod Browning, que estreou em 1932 com muita polêmica.
Os eventos conturbados por trás do filme se dão pelo fato da escolha do diretor em escalar pessoas com deficiência para estrelarem em sua película. Se ainda no século 21, esse grupo social ainda é marginalizado, quase cem anos atrás as circunstâncias eram ainda mais tensas. Freaks foi rejeitado pela sociedade e se tornou um fracasso de bilheteria, sendo reconhecido apenas durante a década de 1960 no movimento de contracultura dos midnight movies. Esse período serviu para reavivar a relevância da narrativa focada em um grupo de artistas de um circo dos horrores.
O filme apresenta Cleópatra (Olga Baclanova), uma trapezista que mantém um relacionamento com Hércules (Henry Victor), um homem forte que ganha a vida exibindo os músculos no circo. No entanto, o casal descobre que Hans (Harry Earles), um dos anões do local, é herdeiro de uma grande fortuna. Nesse momento, a jovem mulher passa a seduzi-lo para roubar todas as suas posses. O plano ardiloso da dupla funciona de início, porém os outros artistas circenses passam a duvidar das intenções de Cleo.
O roteiro audacioso de Freaks teve como inspiração o conto Spurs, do escritor estadunidense Tod Robbins. A peça literária apresenta a mesma relação abusiva entre um anão e uma trapezista em um pequeno circo. Desse modo, Willis Goldbeck, Leo Gordon e o próprio Tod Robbins beberam dessa fonte para dar vida ao texto do clássico do horror. Em ambos os casos, o mais inovador da trama é a forma inclusiva de tratar as pessoas com deficiência, deixando essa temática explícita em alguns diálogos presentes ao longo da narrativa.
Além disso, Freaks trouxe visibilidade aos atores do filme. Durante o processo de seleção do elenco, Browning, que optou por selecionar uma gama de pessoas ligadas diretamente aos espetáculos de circo, rodou os Estados Unidos junto com o diretor de elenco, Ben Piazza, à procura dos intérpretes ideais para a obra. A busca por feiras e circos rendeu frutos, como Schlitzie, um artista com microcefalia que trabalhou sua vida inteira no ramo do entretenimento, Minnie Woolsey, que foi diagnosticada com síndrome de Virchow-Seckel, e Prince Randian, que impressionava com a sua mobilidade mesmo tendo nascido sem os braços e as pernas.
A representatividade desses artistas com deficiência em Freaks os coloca em plano de igualdade aos demais atores do longa, principalmente ao mostrar que o verdadeiro monstro eram aqueles tomados pelo sentimento da ganância. Mas apesar da lição de moral, a situação dos atores e de outras PCD não era nada favorável. Muitos se exibiam nos chamados freak shows, que tinha como foco chocar a população com imagens consideradas anormais para o padrão da época. O formato bizarro de entretenimento era muito popular nos Estados Unidos e o Barnum & Bailey’s, um circo dos horrores fundado por Phineas Barnum, chegou a apresentar milhares de personalidades. Dentre elas estavam as gêmeas siamesas Daisy e Violet, unidas pelo quadril e nádegas, que chegaram a estrelar no clássico de Browning.
Partindo desse imaginário popular grotesco da forma com que as PCD eram vistas socialmente, Freaks inicia com a reação do público após sair do espetáculo. O horror provocado pela película apela para a imaginação do telespectador, a quem é transmitida uma angústia sobre algo que ainda não foi exibido. Em antítese ao clima provocado de início, a primeira aparição das atrações do circo os exibe como indivíduos carinhosos, meigos e que apresentam comportamentos infantis, o que atenua ainda mais a crítica sobre quem é a aberração da história.
No entanto, o rico debate presente no longa não foi altamente explorado da forma que devia. A curta duração do filme, que não chega nem a 70 minutos, faz com que alguns diálogos não sejam muito aprofundados. O motivo para isso se deu pelo fato de os produtores estarem receosos pela reação do público diante da ousadia da trama. Mas ainda assim, o roteiro inovador serviu de grande inspiração para diversas obras.
A escritora Katherine Dunn foi inspirada pelo filme para escrever o livro Amor de Monstro, de 1989. A peça literária narra a vida da família Binewski, que ingerem substâncias tóxicas para darem a luz a crianças fora do padrão esperado e, assim, constroem seu freak show itinerante. Além dessa, Os Simpsons já produziram um episódio inspirado pelo filme. O especial A Casa da Árvore dos Horrores XXIV trouxe a história Freaks No Geeks que apresenta o mesmo roteiro do longa de Browning, porém adaptado com a caracterização dos personagens da série.
Igualmente a essas obras, American Horror Story também se influenciou por Freaks e acabou dedicando uma história da antologia exclusiva ao ambiente circense. A quarta temporada da série, intitulada de Freak Show, trouxe todo essa atmosfera tensa desses espetáculos sórdidos, com personagens que remetem diretamente às personalidades do longa, como Pepper (Naomi Grossman) e as gêmeas Bette e Dot Tattler (Sarah Paulson). Além disso, o showrunner, Ryan Murphy, ainda exaltou a película ao referenciar o desfecho de Cleópatra aos gritos de “um de nós”, entoado por seus colegas de trabalho.
Com esse final surpreendente da personagem em Freaks, o diretor completa sua crítica, questionando a moral e os padrões sociais. A conclusão marcante da obra contribuiu para a consagração da película como um filme cult nas salas de cinema dos midnight movies. 90 anos após seu lançamento, fica bem claro que a fama do terror dos anos 1930 veio de sua capacidade de dar visibilidade a artistas de circo marginalizados e, ainda, apresentá-los como forma de crítica social.