Fiona Apple dita suas próprias regras em como criar um clássico instantâneo

O título do álbum quota uma fala da série britânica ‘The Fall’, na qual a personagem de Gillian Anderson, que investiga crimes sexuais, encontra o antigo cativeiro de uma garota torturada, e pede que tragam um alicate para poder entrar no local (Foto: David Garza/Epic Records)

Carlos Botelho

Após oito longos anos de espera, o aguardado quinto álbum de estúdio de Fiona Apple, Fetch The Bolt Cutters, chegou fazendo barulho na internet. Além de arrancar notas máximas das principais publicações da crítica especializada, o disco ainda entrou pro seleto grupo a receber um 10.0 da polêmica Pitchfork. O último lançamento a conquistar este feito foi o monumental My Beautiful Dark Twisted Fantasy de Kanye West, dez anos atrás. 

O que faz este álbum ganhar status de clássico instantâneo é o fato de Fiona Apple ter transformado sua própria casa em estúdio, adicionando os ruídos e barulhos do cotidiano ao instrumental da obra. Somadas a esta imprevisibilidade e crueza sonora únicas, Fetch The Bolt Cutters constrói ao longo de treze faixas um olhar poderoso e libertador sobre os fantasmas do passado. 

Como parte do processo do novo álbum, Fiona passou cerca de cinco anos sem ouvir nenhum lançamento, apenas músicas que já conhecia (Foto: Reprodução)

Se em Left Alone, canção do álbum The Idler Wheel… de 2012, Apple se pergunta como alguém pode amá-la sendo que há um clamor próprio por solidão, em I Want You To Love Me ela se abre novamente ao amor, só que agora por si mesma. A faixa de abertura captura a essência catártica de todo o registro.

Fiona utilizou a necessidade de isolamento social a seu favor, transformando sua casa em cenário e também protagonista da obra, que juntamente com sua voz marcante, piano, percussão improvisada, letras autobiográficas e interferências sonoras do ambiente, subverteram o caráter imaculado do estúdio de gravação.

Um bom exemplo do processo de se adotar um estúdio musical não-convencional, e todas as suas potenciais intempéries, é a faixa-título, que durante sua gravação foi surpreendida pelos latidos dos cachorros da cantora, que além de mantidos, foram posteriormente incluídos e creditados a música. 

Fiona Apple mantém uma relação especial com todos os seus cachorros. Em 2013 ela cancelou uma série de shows, incluindo uma data em terras brasileiras, devido ao falecimento de sua pitbull, Janet (Foto: Zelda Hallman/Vulture)

A dificuldade da cantora com os métodos tradicionais de gravação musical vem desde o seu álbum de estreia, o elogiado Tidal de 1996. Em entrevista para a Vulture, Apple detalha que durante as sessões em estúdio tinha que seguir coordenadas de terceiros para criar sua própria arte. A busca por autonomia em seu processo criativo se reflete 24 anos depois, com a dona do hit Criminal experimentando e aprendendo novas formas de percussão dentro de sua casa e fazendo dos erros deste percurso parte do produto final.

Liricamente, a temática de Fetch The Bolt Cutters é variada e amplamente inspirada nas experiências pessoais da artista. Um dos principais assuntos que foi abordado em mais de uma faixa é a relação de Fiona com outras mulheres. Em Shameika, ela volta a sua infância para mostrar como garotinhas podem ser cruéis umas com outras, revelando que a rivalidade feminina é incentivada desde cedo. Já em Newspaper ela relata os esforços de um ex-namorado para impedir a boa relação dela com o atual. 

Fiona Apple e a modelo e atriz Cara Delevingne, uma de duas amigas pessoais de mensagens de texto. Fiona convidou Cara para ir até sua casa gravar vocais de apoio para a faixa-título do disco (Foto: Zelda Hallman/Instagram)

Faixas como Under The Table e Ladies, mostram uma Fiona bem-humorada e que não tem medo algum de expor com acidez certeira sua visão de mundo. Esta faceta pouco conhecida da cantora revela a forma orgânica e espontânea que se deram as narrativas deste disco, visto que muitas vezes ela foi retratada pela mídia apenas como uma mulher eternamente marcada por seus traumas.

For Her parece continuar as experimentações vocais de Hot Knife, de 2013. Apple transformou ao longo dos anos sua voz em um poderoso componente de sua obra. Dos sussurros aos gritos, das harmonizações as dissonâncias propositais, a cantora cria um universo cheio de nuances para cada faixa do trabalho. A falta de polidez sonora é um reflexo fiel do realismo libertador do disco.

Fetch The Bolt Cutters é o ápice (até agora) de uma artista que sempre usou sua arte para gritar aos quatro ventos o que é ser uma mulher no mundo contemporâneo. Fiona dita suas próprias regras de como quer criar música, e faz disso o motor para uma sonoridade única, que faz as pazes com seu passado. A obra já nasceu um clássico, e é uma referência à todos que desejam usar a arte como um alicate, para cortar as correntes que aprisionam suas próprias narrativas.

https://open.spotify.com/album/0fO1KemWL2uCCQmM22iKlj?si=Utdia-6xQPueGffTbFFT6A

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