
Arthur Caires
Se a discografia de Fiona Apple sempre carregou nuances de raiva e angústia sobre a experiência de ser mulher, Fetch the Bolt Cutters (2020) surge como a obra em que ela finalmente rompe qualquer amarra que pudesse suavizar sua fúria. Neste álbum, a crueza e a violência emocional não são filtradas – são expostas sem reservas. A faixa-título evidencia exatamente esse espírito de libertação: “Pegue os alicates, estou aqui há muito tempo/Não importa o que aconteça”. Ou seja, arranque as barras dessa minha prisão e me deixe falar.
O disco é o seu quinto lançamento e marcou seu retorno após oito anos desde The Idler Wheel… (2012). Com exceção de Ladies, todas as faixas foram escritas exclusivamente por Apple. Já na produção, a compositora contou com o apoio de sua banda, composta por Sebastian Steinberg, David Garza e Amy Aileen Wood. Fetch the Bolt Cutters não só se tornou seu trabalho mais aclamado, como também entrou para a história ao receber da renomada revista Pitchfork o selo Best New Music e a cobiçada nota 10; um reconhecimento reservado a poucos artistas.
Durante cinco anos, Fiona Apple se isolou de novos lançamentos musicais e transformou sua própria casa em estúdio para dar vida ao álbum. Gravado inteiramente dentro de seu lar, o disco incorpora o ambiente como um instrumento vivo – dos sons do cotidiano aos latidos de seus cachorros, cada ruído espontâneo se torna parte da experiência. A ausência de polimento sonoro não é descuido, mas sim uma escolha deliberada, refletindo o realismo cru e a sensação de libertação que permeiam o trabalho.

Fetch the Bolt Cutters se constrói a partir de três pilares centrais: a trajetória de Fiona Apple, reflexões sobre o passado e incisivas denúncias feministas. Sua jornada na Música ganha destaque na faixa-título, onde a artista revisita os desafios de sua carreira e a luta contra expectativas impostas. Referenciando Kate Bush, ela expõe a pressão de se encaixar em padrões que nunca foram seus: “Eu cresci no lugar que eles me disseram que eu poderia me encaixar/Sapatos que não foram feitos para subir aquela colina/E eu preciso subir aquela colina/Eu irei, eu irei, eu irei“.
Já em Under the Table e Shameika, a artista remonta experiências antigas que a fizeram quem ela é hoje. Um jantar forçado com pessoas desagradáveis em que Apple percebe que não consegue ficar quieta ao ouvir absurdos ou uma colega de classe que lhe disse “Você tem potencial” – um mantra que lhe ocorre de tempos em tempos –; essas são algumas memórias que a compositora percebe como momentos que definiram sua personalidade. “Eu sou irritada, engraçada e amigável/Eu sou um bom homem em uma tempestade”.
Em entrevista à Vulture, Fiona Apple declarou: “Este álbum trata de não permitir que os homens nos mantenham separadas umas das outras para que eles possam controlar a mensagem“. A fala remete à música Ladies, que coloca em xeque a rivalidade feminina tão amplamente encorajada pela sociedade. Além disso, na faixa For Her, a artista transforma indignação em denúncia ao narrar um caso de assédio, inspirado na revolta que sentiu ao ver Brett Kavanaugh – acusado de má conduta sexual – ser nomeado para a Suprema Corte dos EUA em 2018, durante o governo Trump. A faixa carrega a linha mais brutal do álbum: “Você me estuprou na mesma cama em que sua filha nasceu“.
Cinco anos depois, Fetch the Bolt Cutters segue tão necessário quanto no dia de seu lançamento. Em um mundo onde a opressão persiste e novas formas de silenciamento se impõem, o disco continua a soar como um grito de libertação. E não é apenas na letra que essa urgência se manifesta. É também na voz de Fiona Apple, que oscila entre o sussurro e o berro, entre a ironia e a raiva crua. Sua entrega vocal é tão visceral que não permite que a mensagem passe despercebida. O grito não pode mais ser contido.
Se, lá em 2020, o álbum nos chamava para arrancar as correntes e dizer tudo o que precisa ser dito, hoje, esse chamado é ainda mais urgente. O mundo precisa, mais do que nunca, de vozes que não aceitem amarras, de artistas que, como Fiona Apple, se recusem a falar baixo para não incomodar. Porque, como bem disse Rita Lee, “não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente“.