Raquel Dutra
Em Uttar Pradesh, estado do norte da Índia que é um dos mais populosos do mundo, níveis endêmicos de violência atravessam a vida das mulheres que ali habitam. No sistema de castas que define a organização social do país e reforça suas profundas desigualdades, elas estão com os Dalits, o extremo inferior da hierarquia de classes da cultura indiana ainda vigente, estabelecido 1500 anos antes de Cristo. Da população que compõem a interseção das maiores opressões do país, surgiu, em 2002, uma forma de expressão urgente através do jornal Khabar Lahariya com uma expectativa de fracasso. Mas ao invés disso, ele resiste, 20 anos depois, Escrevendo com Fogo uma revolução social, política e cultural através das mãos mais rejeitadas da sociedade indiana.
A motivação de retratar a história das mulheres que foram contra todos os padrões, preconceitos, violências e segregações partiu de Sushmit Ghosh e Rintu Thomas. A partir de 2016, a diretora e o diretor, ambos conterrâneos das jornalistas revolucionárias, passaram acompanhar o dia a dia da redação independente de Khabar Lahariya (traduzido para o inglês como “News Wave”, no português livre, “Onda de Notícias”), que na época, vivia a inevitável adaptação para o digital ao mesmo tempo que também expandia seu alcance exponencialmente e fortalecia sua relevância e influência na região – mesmo assim, ainda brigando muito pelo mero respeito.
Desta forma, Writing With Fire (no original, em inglês) não só se dedica ao honroso trabalho de registrar a história do único jornal liderado unicamente por mulheres da Índia e um dos maiores do país, nem mesmo se restringe a grande tarefa de analisar a questão de gênero, econômica e social do país. Em meio a todas as camadas de grande importância da sua história, o filme constrói também um poderoso relato da prática do jornalismo alternativo e de gênero, assim como contempla as mudanças comunicacionais propostas pela era digital em uma das esferas mais importantes para a vida em sociedade – o jornalismo.
Não à toa, o documentário indiano conquistou os críticos do The New York Times e o título de “filme sobre jornalismo mais inspirador de todos” pelo The Washington Post – que inclusive já protagonizou uma das obras mais referenciais do gênero. Abarcando a complexidade do seu tema em instigantes 94 minutos, Escrevendo com Fogo consegue renovar o ideal do Jornalismo e compreender a sua grandeza e importância como ele essencialmente é: uma forma de transformar o(s) mundo(s) em que vivemos.
A maior responsável por desenvolver essa visão no documentário é Meera Jatav, co-fundadora e editora-chefe do jornal durante o período compreendido pelo filme. Apresentada como a liderança mais ativa no ambiente, ela logo abre a sua história de vida que, ao contrário do que sua posição transgressora pode sugerir, tem trechos que em nada se diferem das vivências das demais mulheres de seu contexto. Professora graduada em Ciências Políticas, ela se casou aos 14 anos e concluiu sua formação depois de vencer a resistência do marido e da sociedade local, até atingir sua posição de destaque e inspiração para as mulheres da comunidade.
Ao seu lado e sob a sua liderança, Suneeta Prajapati é a repórter que defende o jornalismo das mulheres indianas na linha de frente do Khabar Lahariya. Na câmera trêmula que Sushmit Ghosh divide com Karan Thapliyal a fim de acompanhar a rotina agitada do jornal, ela aparece cobrindo questões políticas, criminais, ambientais e locais, denunciando casos de violência sexual, desamparo da polícia e até mesmo abuso de autoridade, assim demonstrando o alcance e importância do trabalho para o espectador de Escrevendo com Fogo.
É através da personagem que o documentário também mostra o maior desafio enfrentado pelas jornalistas: o preconceito, que as coloca como alvo de muitas perguntas quando estão ali para fazê-las. Mas para as mulheres do Khabar Lahariya, abaixar a cabeça diante das opressões nunca é uma opção. Nos momentos capturados pelo documentário, é comum encontrar Suneeta enfrentando seus obstáculos, sejam eles concretos ou simbólicos, e observar Meera criticando assiduamente o modelo de jornalismo que sufocou sua missão fundamentalmente coletiva num fim comercial individual. Aos olhos daquelas mulheres, não é só um veículo de reportagem, mas sim um meio de se fazer justiça.
E em momento algum, o idealismo das jornalistas significa ingenuidade. As lentes de Escrevendo com Fogo capturam nos olhos de suas personagens o entendimento que elas têm sobre a dimensão prática de seus atos. Sem perder tempo com críticas culturais preconceituosas e rasas, a ótica próxima dos diretores compreende que o sucesso das mulheres Dalit redefinem o significado de poder dentro daquela sociedade. Principalmente como profissionais e cidadãs na era da informação, elas sabem como ninguém que o jornalismo pode ser o melhor meio para recuperar o que lhes foi roubado.
Assim, o documentário toma como principal marco temporal o sucesso. Alcançando um público, influência, recursos e acessos cada vez maiores, elas também reformulam a noção comum do profissional como um homem de casta superior, triunfando com um jornalismo realizado por mulheres da mais baixa classe da sociedade. O filme se transforma, muito felizmente, numa espécie de jornal do jornal, fazendo questão de apreciar cada conquista da equipe Khabar Lahariya na tela de Escrevendo com Fogo.
Mas como já é sabido, o acesso aos meios não é suficiente para se livrar completamente dos problemas sociais. Humanizando suas personagens e distanciando qualquer impressão de retrato romantizado, Escrevendo com Fogo não esquece dos motivos que fundaram o jornal e que, por consequência, levaram a sua equipe de filmagem até ali. Entre o dia a dia impressionante das jornalistas, ainda existem abusos maritais, violências domésticas, perseguições e a insuportável pressão para ceder aos padrões, razões pelas quais algumas até deixam seus maridos e mantém a si mesmas e seus filhos através do seu trabalho, ou, em outro extremo, se desligam de suas ocupações profissionais no Khabar Lahariya.
É impossível nomear a importância de tudo o que é apresentado em Escrevendo com Fogo através da história das jornalistas indianas. Seu principal efeito, no entanto, é fácil de identificar: o documentário parece existir para mostrar que, a partir do reconhecimento de um contexto específico e revolucionário, aquelas mulheres não estão sozinhas. No dia 8 de outubro de 2021, a jornalista filipina Maria Ressa foi uma das honradas com o Prêmio Nobel da Paz, que apresentou sua decisão como forma de reconhecer a luta pela liberdade de expressão, “uma pré-condição para a democracia e para uma paz duradoura“.
Assim, a mesma questão de valorização ao jornalismo e o reconhecimento de que um dos ofícios mais perigosos do mundo é especialmente difícil para as mulheres tem seu lugar ideal de visibilidade no Oscar 2022. A premiação da Academia já tem a tendência de reconhecer obras documentais de concepções femininas em sua categoria reservada ao gênero, e elas sabem como ninguém que existem palavras a serem ditas e fogo a ser consumido por todos os lados. Quando as duas condições se convergem em Escrevendo com Fogo, nós temos a oportunidade de criar o momento ideal para voltar a nossa atenção às pessoas que, através da sua expressão contundente, estão transformando o mundo.