Cineasta discorre sobre o impacto do sertão na sua filmografia e o lançamento de seu novo filme, Acqua Movie, protagonizado por Alessandra Negrini
Caroline Campos
Foi durante o governo de Fernando Collor que, em 1990, a Embrafilme, principal órgão de financiamento, coprodução e distribuição de filmes no país, foi extinta. O resultado não demorou para chegar e, sem incentivos fiscais, o Cinema brasileiro foi quase totalmente eliminado na época, quando cerca de apenas 3 longas-metragens chegavam às telas por ano. Com uma reestruturação gradual através de novas fontes de recursos, como a Lei de Incentivo à Cultura, em 1991, e a Lei do Audiovisual, em 1993, a produção cinematográfica nacional foi recuperando o fôlego e, hoje, chamamos essa fase regenerativa de Cinema de Retomada, entre 1995 e 2002.
Mas para que toda essa história? Hoje, o Persona Entrevista traz um dos cineastas que participaram dessa avalanche de novos filmes sedentos por vida. Ao lado de Paulo Caldas, Lírio Ferreira dirigiu o primeiro filme pernambucano em quase 20 anos sem produções no estado. Baile Perfumado, de 1996, traz um Lampião pop em uma narrativa influenciada pelo manguebeat, recriando as fotografias de Benjamin Abrahão do cangaceiro e seu bando. 25 anos depois, sob a sombra de um outro aniquilador cultural na presidência, Lírio comenta sobre a estreia de Acqua Movie em meio à pandemia e a importância da resistência artística durante o desgoverno Bolsonaro.
O sertão sempre foi protagonista na filmografia de Lírio Ferreira. Além de Baile Perfumado, Árido Movie, de 2005, também visitou as paisagens semiáridas de Pernambuco para acompanhar Guilherme Weber em uma narrativa de ‘excesso de informação e falta d’água’. Agora, em 2021, Ferreira estabelece uma “extensão kardecista” dos acontecimentos que dirigiu 16 anos atrás com Acqua Movie, que chegou aos cinemas em junho retratando a influência da água de transposição do rio São Francisco na secura sertaneja. O longa traz Weber de volta no papel de Jonas, mas o protagonismo fica a cargo de Alessandra Negrini e Antonio Haddad.
Por que você quis revisitar Árido Movie depois de 16 anos?
Lírio: “O Árido Movie é um filme que eu tenho muito carinho na minha vida. Representa muito um momento da minha vida, tenho muitas memórias afetivas do filme. Eu acho que nunca mais vou fazer um filme, na minha concepção, tão belo e tão imperfeito. Não imaginava revisita-lo assim naturalmente, mas aí uma vez o acaso me colocou no sertão. Eu me esbarrei com as obras de transposição do rio São Francisco e tive um alumbramento que algumas portas eu poderia revisitar ali. Pensei, a princípio, em uma coisa mais normal, que seria uma continuação clássica, porque eu vi aquelas obras de transposição e eu percebi uma certa utopia, uma possível utopia da água que, no Árido Movie, era uma coisa meio ‘excesso de informação falta d’água’ e, de repente, tinha isso ali; uma esperança de água que fosse inatingível, mas estava ali e eu me senti no impulso de revisitar.”
“A princípio, deu uma coisa clássica mesmo, mas com o tratamento, com a pesquisa, com a entrada dos roteiristas, o Marcelo Gomes, o Paulo Caldas, as provocações, as pesquisas em campo, o filme acabou passando a ser uma extensão. Mudou o foco, acho que a água trouxe o personagem feminino da Alessandra pro filme, a maternidade do Antonio, que virou um spin-off da barriga final da Giulia Gam em Árido Movie, e acabou virando, ao invés de uma continuação mais cartesiana, mais clássica, acabou virando uma extensão mais kardecista, mais espiritual, em que os personagens estariam ali em essência e alma, mas não necessariamente os mesmos atores e os mesmos nomes de personagem. ‘É e não é, mas está sendo’, como diria Celso Martinez.”
“O sertão tem aquele tempo dele”
Acqua Movie começou a ser filmado em São Paulo e, depois, viajou diretamente para as cidades de Salgueiro, uma das pontas do Polígono da Maconha – onde se produz a melhor maconha da América Latina, brinca o diretor –, Cabrobó, Belém de São Francisco e Santa Maria da Boa Vista. Lírio reforça que filmar em estradas, ainda mais no sertão, é um desafio e tanto. “Não é um lugar muito confortável, digamos assim. Um lugar muito quente, um sol muito forte, a natureza é muito presente, muito selvagem, inóspita, muito agressiva até certo ponto, né, muito inseto e enfim”, conta Ferreira, que também agradece à equipe e ao elenco por o ajudarem a enfrentar o desafio. No entanto, para o cineasta, não há nada que simbolize mais o Cinema brasileiro do que a região.
Lírio: “E por mais que o sertão tenha essa primeira imagem que você tem né, a primeira imagem mais seca, mais árida, mais inóspita, essa coisa toda que se tem, eu quando vou ao sertão me bate de uma maneira diferente. Na verdade, eu meio que subverto essa história, porque eu sempre acho o sertão extremamente fértil, acho o sertão extremamente poético, eu acho o sertão extremamente solidário. O sertão é um povo, a geografia, me encanta de uma maneira e me toca de uma maneira muito especial, e o tempo no sertão passa de uma forma muito diferente. O tempo das pessoas, o tempo da paisagem, então é o que você falou mesmo, é contemplar, é ligar a câmera e esperar o momento certo que vai aparecer e tentar criar uma mise-en-scène, uma dramaturgia no meio desse cenário simbólico, cenário que é o mais simbólico e mais profundo do Cinema brasileiro.”
Na trama, a personagem de Negrini é uma documentarista engajada na defesa dos direitos dos povos indígenas. Quando se aventura com o filho em uma viagem até Nova Rocha, interior de Pernambuco, se depara com a violência com que essas comunidades são tratadas, principalmente pela quadrilha de Múcio, prefeito da cidade interpretado por Augusto Madeira. “A gente joga aquela trajetória ali e é um território que eu acho muito bacana de você trazer isso para dar uma visibilidade a essas nações indígenas do Nordeste. Todo mundo tem essa ideia da Amazônia, do Xingu, mas temos nações indígenas fortes e históricas no Nordeste. Então, acho que o filme traz um pouco da questão da briga pela terra que ainda existe, até hoje é secular, tanto com os agricultores quanto com povos indígenas e dá visibilidade nessas nações importantíssimas na construção daquele pedaço”, rebate Lírio. Acqua Movie contou com a participação do povo Truká e do povo Pankararu.
Você explora o sertão em boa parte da sua filmografia. O que mudou desde Baile Perfumado, lá em 1996? O que mudou, não só no sertão, mas na sua própria visão desse cenário?
Lírio: “No sertão o tempo é diferente, né. Não muda muito. Dá pra perceber que quando eu fui filmar lá pela primeira vez, eu tinha o cabelo preto até aqui, a barba era feita, não tinha óculos, etc e tal. O tempo foi passando, o sertão muda em um tempo diferente do meu, ainda bem. O sertão ainda tem as mesmas contradições, os mesmos paradoxos que tinha naquela coisa do Árido Movie. Chegou a modernidade, a internet, a fibra óptica, o celular, mas a água não chega. Tem esse conflito ainda. Enquanto isso, a minha barba ficou branca, os cabelos não estão tão… [risos] já foram pintados também, mas o sertão tem aquele tempo dele. Um segredo, um enigma muito forte, mas muita poesia. Uma coisa é sempre ter respeito por aquele lugar. Eu me sinto muito bem, e tento me conectar com esse tempo que é diferente do meu, mas que se move. Ele não tá parado não. Ele pode estar se movendo no tempo dele, mas ele está em movimento. Sempre em constante mudança.”
“Primeiro veio o verme, depois o vírus”
É impossível falar sobre Cultura em 2021 sem mencionar Jair Bolsonaro. O presidente tem como plano de governo, desde que assumiu o cargo em 2019, o desmonte do setor – mesmo que a indústria audiovisual brasileira seja a quinta maior atividade econômica do país, responsável por mais de 330 mil empregos. Para Lírio, Bolsonaro não consegue conversar nem conviver com o que o contradiz. “Ele não consegue entender, ele só consegue exterminar. (…) Mas eis que burro e tapado do jeito que ele é, não sabe que a gente tem uma coisa que é a resistência. A gente é muito mais forte do que isso, é ele que é passageiro”, ressalta o diretor.
E em meio a tanta imparcialidade, a tão pouco posicionamento de artistas e influencers, Lírio é certeiro ao afirmar: “estar em cima do muro é estar do outro lado do muro”. Em uma pandemia que já acumula mais de 500 mil mortos, onde 400 mil poderiam ter sido salvos pela resposta de um e-mail, o silêncio diz muito, seja ele em vida ou em morte. “É muito dificil, hoje em dia, você dialogar com uma pessoa que é adepta à tortura, que o maior ídolo do cara é um torturador. (…) A gente tá vivendo essa dupla onda, né. Primeiro veio o verme, depois o vírus. Então, lançar filme é resistir”.
No entanto, a estreia de Acqua Movie nos cinemas – que era para ter acontecido ano passado – durante o isolamento só se deu por conta das obrigações e compromissos legais que o filme possui e que, se ignorados, podem tornar a distribuidora e produtora inadimplentes. “A gente tem plena consciência de que o filme não vai gerar aglomeração. Quem tiver com condição e segurança total, assiste. Quem não, fica em casa com mais segurança e espera o filme passar no streaming”, explica o cineasta, já que, para o longa poder chegar aos serviços de streaming, ele precisa, antes, ter sido lançado nas telonas.
Como Acqua Movie, então, se relaciona com o Brasil atual, mudando da paisagem semiárida para um sertão que jorra água?
Lírio: “Quando eu tive esse alumbramento, por assim dizer, a gente ainda tava no meio daquele paraíso, numa sequência de governos que tinham uma visão mais progressista, mais humanista. E, de certa maneira, bem ou mal, queria consertar algumas coisas na construção dessa sociedade brasileira, que é muito errada, muito equivocada e mal feita. (…) O roteiro foi feito em 2016 e a gente filmou em 2017. Existia só uma leve ameaça, mas jamais passaria na minha cabeça que aquela ameaça que pairava no ar viria a se concretizar. Era uma coisa folclórica, um louquinho ali que tinha seus 10% de pessoas que acreditavam naquele discurso equivocado e não passaria disso. E o filme foi filmado e montado e foi quando o personagem, essa persona que infelizmente assumiu o país, foi crescendo, mas o filme ficou pronto antes da eleição dele.”
“Mas aí a gente percebe, na verdade, que aquilo tudo, apesar da gente ter tido esse sopro de esperança em algumas propostas, sempre existiu no Brasil, né. Ou tava debaixo do tapete ou tava adormecido, mas tava ali. E quando você tem esse fascismo, essa falta de humanidade, toda essa perversidade que é o momento que a gente tá vivendo, agora sobretudo em um contexto de pandemia, a gente vê que tava tudo ali. (…) Então, acho que o filme, infelizmente, conversa ainda com essa situação que a gente tá vivendo hoje e com outras camadas também, como a briga pela terra, uma terra que pertenceu àquelas nações indígenas daquele território sagrado onde a gente filma, que é na região do São Francisco. (…) E aí a gente traz tudo isso que infelizmente ainda é atual e contemporâneo e o Cinema, meu Cinema, que eu acredito, que eu exercito, vem pra denunciar e pra contextualizar essas desigualdades e essas infelicidades que ainda permeiam nossos caminhos.”
Se você pudesse citar três filmes e três diretores nacionais, quais seriam?
Lírio: “Eita… que coisa! Fica difícil. Vou tentar botar assim que talvez um represente vários, por exemplo. Eu tenho uma admiração muito grande por Cinema Novo, então vários eu poderia citar aqui, mas uma pessoa que tá ali presente, que eu trabalhei e tenho um carinho muito grande, eu cito Ruy Guerra, Os Fuzis. Um filme seminal. Acho Ruy Guerra um diretor, como diria meu amigo Cláudio Assis, do caralho. Ele tem 90 anos com um espírito jovem absurdo nos filmes deles. Seria o primeiro. Ali da minha geração… caramba, como é que eu posso fazer isso? Vou falar de um e o outro vai ficar chateado, né, mas enfim…”
“Vou citar Beto Brant, um amigo querido de geração, que faz um Cinema que eu adoro e aprendeu na mesma época que eu. A gente foi sócio no Sangue Azul, e [escolho] Os Matadores, que é o filme da minha geração que eu gosto muito e representa todos esses – Paulo Caldas, Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Heitor Lacerda, Natara Ney, Renata Pinheiro. E dos jovens, eu vou falar que assisti um filme que não consegui assistir no cinema, também teve esses problemas de lançamento, o filme da Maya Da-Rin, A Febre. Um filme fantástico, incrível. Conheci ela há um tempão atrás e realmente achei o filme formidável, incrível, com um olhar super sensível e novo. Me penou no bom sentido. Então seriam três pessoas, assim cada uma numa geração, representando.”
Quais são seus próximos planos?
Lírio: “É poder sair na rua sem máscara, abraçar o povo, brincar carnaval, dar beijo de boca, fazer um monte de coisa louca, esse seria meu próximo desejo. Mas é o filme do Cafi mesmo que eu tô fazendo com Natara Ney. É o filme de um fotógrafo pernambucano, maravilhoso, amigo, querido, e fotógrafo de várias capas de disco e vários momentos. Cafi fotografou muita gente e é um documentário que eu venho dirigindo com Natara que tá quase pronto e, quando a gente tiver outra possibilidade, a gente vai tá junto de novo.”
Acqua Movie passou pela Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, pelo Festival do Rio e pela Mostra Ecofalante de Cinema.