Diretor de “Casa de Antiguidades” comenta suas inspirações e o impacto do filme, único brasileiro na seleção de Cannes 2020, no exterior
Caroline Campos e Vitor Evangelista
Como parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o Persona entrevistou realizadores de alguns dos filmes presentes no festival. Nos próximos dias, os leitores do site poderão ter acesso na íntegra a essas conversas exclusivas (coordenadas pela nossa equipe), e que foram realizadas através de videochamadas. Assim, mesclamos o texto clássico narrativizado do Persona com as perguntas e respostas em forma de pingue-pongue, chegando à uma leitura mais fácil e menos carregada.
Se ficou curioso, é só acompanhar abaixo o resultado da nova empreitada da editoria: apresentamos o Persona Entrevista. E, para iniciar com o pé direito, que tal conhecer um pouco mais sobre o filme e o diretor que representaram o Brasil virtualmente em Cannes neste ano?
Um sonho em uma casa abandonada com ares ancestrais e objetos vagamente familiares. Foi assim que surgiu Casa de Antiguidades, primeiro longa do diretor paulista João Paulo Miranda Maria. O horror de mal estar, inclusive, lutou pela oportunidade de representar o Brasil no Oscar 2021 na categoria de Filme Internacional. A ideia foi amadurecendo, se desenvolveu, e, em 2015, o diretor já tinha a primeira versão do roteiro, praticamente a mesma do resultado final.
Nascido em Rio Claro, interior de São Paulo e berço do movimento integralista, não foi difícil para Miranda Maria retratar o “cinema caipira” na sua carreira cinematográfica, que conta com curtas-metragens em vários festivais ao redor do mundo. Ele chegou a ser selecionado para a competição da Semana de Crítica em Cannes. Na visão do diretor, o conceito da arte caipira aborda “um universo de personagens como pedras brutas, que têm marcas do tempo, história e sofrimento dentro deles e de outras gerações. (…) Eles não falam, quase guardam para si”.
Em Casa de Antiguidades, essa tal “pedra bruta” é Cristovam, um velho excluído pela sociedade racista e xenofóbica em que vive, e interpretado pelo veterano Antônio Pitanga, que contrastou com a estreante carreira de Miranda Maria. “Eu imaginava que o Pitanga era aquele que trazia a história do cinema nele, independente da cor da pele, porque ele tinha a história do cinema brasileiro”, foi a justificativa do diretor que, no roteiro, não especificava Cristovam como um homem negro ou com mais de 80 anos. No entanto, desde o início, João já imaginava Pitanga no papel do protagonista, e trabalhar com ele, logo na estreia do formato longa-metragem, foi como ser batizado na sétima arte.
De família conservadora, João Paulo Miranda Maria trouxe muito de sua vida para o roteiro de Casa de Antiguidades. Ele estudou com bolsa em uma rígida escola alemã, cercado de um preconceito antigo que se esgueira para fora dos bueiros nos dias de hoje. “Eu acho que agora, infelizmente, nesse presente, eles [preconceitos] parecem que ganham autoridade, propriedade, coragem, para expor todas essas intolerâncias escondidas debaixo do tapete”, lamenta o cineasta, que, mesmo atualmente residindo na França, enfatiza sua nacionalidade a todo momento e não deixa de acompanhar o cenário brasileiro.
E falando na cena do Brasil, as inevitáveis comparações de Casa com Bacurau, o fenômeno de 2019, chegariam logo. O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles também foi figurinha carimbada de Cannes, além de carregar muito do cinema de horror entrelaçado numa narrativa que sufoca o regionalismo e a figura do invasor. Quanto aos paralelos das obras, Miranda Maria enxerga pelo lado positivo. O paulista reconhece as aspirações conjuntas de revolta social que os filmes dividem, mas traça a linha definidora de Casa de Antiguidades no apelo para com a audiência.
Enquanto usa o termo cinema de autor para definir o próprio filme, Miranda analisa Bacurau como “um filme que tenta dialogar mais com a massa, tenta algo mais do pop, do popular”. São propostas, entregas e abordagens distintas, é claro, mas é gratificante reconhecer o caráter evolutivo do cinema do Brasil. Que, ao mesmo tempo lida com narrativas familiares, como Que Horas Ela Volta?, passa pela euforia dos bastidores televisivos com Bingo e ainda encontra espaço para estudar o racismo e a desigualdade da Casa de Antiguidades. Esses exemplos rápidos são aquelas produções com mais apelo, as que chegam de modo mais fácil ao público, e para além dela, o país luta com voracidade a guerra contra o desmonte da cultura que o governo impõe.
Em tempos de pandemia, Casa de Antiguidades não recebeu os louros presenciais de um red carpet, já que, nesse ano, o Festival de Cannes não ocorreu. “O destino preparou de ser um ano que não teve tapete vermelho, não teve foto, nenhum glamour. (…) O cinema não é glamour, é qualidade”. Aliás, João Paulo Miranda Maria recebeu todos os elogios e congratulações à distância e longe das salas de exibição. O filme, que além de ser parte da Seleção Oficial de Cannes 2020, marcou presença virtual no Festival de Toronto e ganhou o Prêmio Roger Ebert.
O que surpreendeu o diretor, todavia, não foi nada disso. Por seu histórico em festivais internacionais, ele já esperava uma recepção positiva de seu primeiro longa. Miranda Maria revela que o choque se deu ao Casa de Antiguidades ser incluído numa lista prematura de apostas para o Oscar 2021. A seleção foi feita pela Variety, um veículo de respeito nos EUA, que contatou uma porção de críticos antes da publicação. “Eu nunca imaginei que era um filme de Oscar”, confidenciou o diretor, “foi aí que começou o mundo virar e as pessoas começaram a criar uma expectativa sobre o filme”.
O Brasil escolheu o tocante documentário Babenco: Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou como representante no país na cerimônia que acontecerá no fim de abril do ano que vem. Casa estava acompanhado de outras produções que estrearam na Mostra de SP, como Cidade Pássaro e Valentina. Sucessos de público, como Minha Mãe é uma Peça 3 e o recente Alice Junior, também estavam no páreo. Por mais que Casa de Antiguidades não tenha sido o selecionado, o que nos resta é aproveitar o melhor que o cinema do país tem a oferecer, e nos divertir com um jogo rápido de pergunta e resposta com João Paulo Miranda Maria.
Quais são suas inspirações nacionais?
João: Do Brasil, o meu pilar com certeza veio com o Mário Peixoto, com “Limite”. Para mim, foi o início, ou seja, um cinema forte, autêntico, original, único (…), eu gosto daqueles filmes que se assumem, sabe? Que não ficam em cima do muro, que se assumem na forma e no conteúdo. Então Mário Peixoto com certeza.
Outro, com certeza, é o Glauber Rocha, que até hoje tá aí no panteão dos grandes e, quem sabe, o maior cineasta brasileiro. E um outro nome que eu vejo que deu o próximo passo e que é do contemporâneo, infelizmente também falecido, é o Eduardo Coutinho. Ele, assim como quase ninguém, soube flagrar a alma do brasileiro.
E as estrangeiras?
João: Se eu falar de antes, dos italianos, é [Paolo] Pasolini e [Michelangelo] Antonioni. Para mim, são incríveis, é algo que me impressiona. Agnès Varda, Nouvelle Vague, e também Godard. Mas, atualmente, eu diria que esse grande cinema, que, às vezes, eu brinco, coloco com C maiúsculo, Cinema-História e tal, hoje em dia tá em Hong San Soo, com uma simplicidade, o menos.
Ele vai flagrando essa sociedade, esse ser humano, de uma maneira tão diferente que seu personagem pode gritar e chorar ao mesmo, e é muito sincero e único. Apichatpong [Weerasethakul], que também é uma grande referência, talvez Lav Diaz também é um nome que eu admiro muito.
Qual o papel das personagens mulheres no seu filme?
João: Olha, tanto a Jennifer e a Jandira são as personagens mais progressistas, que estão muito mais à frente do que o personagem do Pitanga, o Cristovam. Isso é nítido, porque ele tem esse machismo, preconceito, vários ranços. Já essas duas mulheres são essas guerreiras, em que elas procuram e querem assumir lugares do qual elas não seriam bem vistas, onde não seria permitido a presença e entrada delas.
Por que você escolheu mostrar a cena de morte da cachorrinha daquela maneira?
João: Eu pensei “não, eu preciso que esse cachorro nos olhe, que a gente o veja, porque é o mesmo plano do Cristovam olhando pra câmera no final do filme. Então, eu preciso me conectar. Eu quero que esse cachorro me olhe, eu não quero ignorar, esconder”. O filme inteiro não esconde, entre aspas, só que o filme é fora de quadro, poucos planos, é isso que pra mim era importante conseguir alcançar, como eu consigo trazer o invisível em cena. […] tudo é um ciclo nesse filme. […] Eu precisava mostrar esse ranço, todos esses problemas de homem antigo, que precisa morrer pra renascer algo novo.
Casa de Antiguidades tem previsão para chegar aos cinemas brasileiros em 19 de novembro.