Persona Entrevista: Daniel Galera

O escritor, tradutor e ensaísta fala sobre seu processo criativo, influências e os 10 anos do romance Barba ensopada de sangue, que está em adaptação para o Cinema e recebe uma edição comemorativa em 2022

Arte quadrada de fundo vermelho. No lado esquerdo, foi adicionado o texto
“Minha carreira de escritor não foi exatamente uma coisa planejada desde cedo”, diz Daniel Galera (Foto: Marco Antonio Filho e Companhia das Letras/Arte: Henrique Marinhos)

Bruno Andrade 

No final de Maio – num frenesi esquisito que faz parecer distante esses quatro meses –, me reuni virtualmente com Daniel Galera para bater um papo sobre sua trajetória literária e os 10 anos de lançamento de Barba ensopada de sangue, romance que ganha uma edição especial comemorativa com lançamento previsto para 4 de Novembro de 2022. Vencedor do Prêmio Machado de Assis, duas vezes 3º colocado no Prêmio Jabuti e já publicado na prestigiosa revista The Paris Review, Galera desponta como um dos grandes nomes da Literatura brasileira contemporânea, relacionado a uma “nova geração de escritores”, mesmo que “nova” já não seja bem a palavra que defina sua carreira. Escrevendo e publicando desde os anos 1990, o escritor paulistano radicado em Porto Alegre construiu um sólido percurso em torno da Literatura, e veio ao Persona Entrevista compartilhar suas experiências, visões de futuro e revelar mais sobre suas obras.

Barba ensopada de sangue narra a história de um protagonista sem nome – por vezes chamado de “nadador” –, um professor de Educação Física que, após o suicídio do pai, se muda para Garopaba, cidade litorânea de Santa Catarina. Esse personagem possui uma condição peculiar (porém existente além da ficção): não é capaz de memorizar rostos. Sob esse contexto, se esquece também de suas próprias feições, percebendo posteriormente que são similares à do seu avô, supostamente assassinado no passado, cujas circunstâncias do crime seguem obscurecidas. A verdade é que Barba é um livro distinto, potente ao revelar as diversas situações e condições que se somam para constituir a identidade dos indivíduos.

A edição comemorativa do romance foi uma sugestão que o próprio autor fez à Companhia das Letras. “Sugeri que a editora fizesse uma edição especial, que sai em Setembro”, revela Galera. O livro já está em pré-venda no site da editora. Em Janeiro e Fevereiro o escritor ministrou um curso, promovido pela Livraria Baleia, no qual revisitou a obra em uma espécie de leitura guiada junto à companhia do autor. “Também foi uma releitura minha – a primeira vez que eu próprio reli o livro inteiro assim, atentamente, desde a época da publicação”, diz. “Foi uma forma de revisitar o livro e perceber o que ele significa pra mim dez anos depois, ver o que eu penso sobre ele e compartilhar essa leitura com o grupo de participantes que se inscreveu. É um ano de comemoração desses dez anos”, reflete. Após uma década, Barba ensopada de sangue segue como referência na Literatura brasileira pós virada do milênio.

Capa do livro Barba ensopada de sangue. Na imagem, há um fundo vermelho com pequenas manchas em cor branca, simulando fios de barba. À direita, está escrito “Barba ensopada de sangue” em fonte de cor branca. Abaixo, está o logo da editora Companhia das Letras, em fonte de cor branca, e à esquerda está escrito “Daniel Galera”, também em fonte de cor branca.
Barba ensopada de sangue foi eleito o Livro do Ano no Prêmio São Paulo de Literatura, em 2013 (Foto: Alceu Chiesorin Nunes/Companhia das Letras)

Em 2022, Barba ensopada de sangue completa 10 anos de lançamento. Qual a importância dele na sua trajetória? Considera esse livro um marco na sua carreira?

Daniel Galera: Sem dúvidas. Ele foi um marco no sentido de que foi meu livro mais bem recebido, desde o início. É o livro que mais vendeu, ganhou um prêmio importante, o Prêmio São Paulo de Literatura, em 2013, e foi um livro que também foi publicado no exterior muito rapidamente, traduzido para 15 idiomas… Então, sim, no contexto da carreira de qualquer autor, é um fenômeno. Foi de longe o livro mais bem sucedido e me colocou num outro patamar de reconhecimento. Até hoje, dez anos depois, é a obra mais comentada e mais lida. A que mais é referenciada quando as pessoas falam de mim, inclusive novos leitores. Continua vendendo aos pouquinhos, mas constantemente. O primeiro capítulo do Barba ensopada de sangue saiu antes do livro ficar pronto, na revista Granta, na edição dos 20 Melhores Jovens Escritores Brasileiros (2012).

É um livro que tem fãs, pessoas que gostam muito, que entram em contato às vezes em eventos literários ou pela internet; sei que essas pessoas existem. Tem muita gente nova que começa a me ler por causa dele, porque é um livro que as pessoas indicam umas pras outras no boca a boca também. Já os livros que eu publiquei depois do Barba vão em direções diferentes; não é que o Barba ensopada de sangue tenha marcado o meu trabalho no sentido de eu continuar escrevendo livros como ele. Os meus livros posteriores são diferentes. É um marco, mas também não sei se em termos de estilo, de escrita, ele estabeleça um ‘antes e depois’.

Foto colorida do escritor Daniel Galera. Na imagem, Daniel está olhando para a câmera. Ele é um homem branco, possui cabelos lisos e curtos, de cor castanha, e barba grisalha. Seus olhos são castanhos. Ele veste uma jaqueta de frio com capuz, em cor preta.
Como tradutor, Daniel Galera já verteu para o português obras de David Foster Wallace, Simon Stalenhag e Chris Ware (Foto: Tonatiuh Ambrosetti/Fondation Jan Michalski)

Como surgiu a ideia para o enredo do Barba? A condição do protagonista, por exemplo, de não reconhecer rostos, me parece algo bastante singular, algo que torna as descrições dos ambientes muito relevantes na obra. Parece haver também uma certa influência do Cormac McCarthy.

Galera: Um romance como o Barba ensopada de sangue, com a extensão que ele tem, com a quantidade de assuntos, temas e elementos que estão incluídos nele, sempre tem múltiplas origens e influências; dificilmente é uma coisa só. Nesse caso, tem algumas que podem ser destacadas como as mais importantes. Talvez a maior de todas seja o fato de que, em 2008, eu fui viver em Garopaba, e isso foi determinante. Me mudei pra lá e fui morar sozinho, assim como o protagonista do livro. Quando eu me mudei, já tinha alguns dos elementos que eu estava planejando incluir no próximo romance, mas ainda não estava formado. 

Antes de me mudar pra lá, ainda em 2007, eu tinha lido um livro do neurocientista português António Damásio, chamado O mistério da consciência (1999), que saiu pela Companhia das Letras. Nesse livro, ele trata de casos de prosopagnosia, que são indivíduos com uma lesão cerebral que, como resultado, não conseguem reconhecer ou gravar bem o rosto das outras pessoas e, às vezes, em casos muito severos, o próprio rosto. Eu fiquei fascinado com essa ideia. Guardei isso de um dia colocar como uma característica de algum personagem de livro.

Ao mesmo tempo, antes de me mudar pra Garopaba, eu tinha começado a ler os livros do Cormac McCarthy, um escritor que fez muito a minha cabeça, fiquei realmente obcecado pela obra dele. Não me lembro exatamente qual foi o primeiro livro dele que eu li, mas foi ou Todos os belos cavalos (1992) ou A estrada (2006). Em Garopaba, li todos os livros dele – comprei todos em sebos e livrarias. A obra completa. O que não tinha em português, comprei em inglês. Foi uma influência muito forte, principalmente A Travessia (1994), o segundo livro da Trilogia da Fronteira, e o Suttree (1979), que é um romance que não foi traduzido pro português e que, inclusive, eu vou traduzir, mas no segundo semestre deste ano. Já estou em tratativas com uma editora. Esses livros foram bastante importantes também pra definir um pouco o estilo de narração do Barba – o tipo de ambientação, de estilo narrativo e de linguagem. A obra do Cormac McCarthy influenciou bastante.

Foto colorida dos livros The Passenger e Stella Maris, respectivamente. Na primeira imagem vemos um céu laranja e, à borda, um rosto de criança em cor azul, com os olhos fechados. Acima está escrito, em fonte de cor branca, Cormac McCarthy, Pulitzer Prize-winning author of the road. Abaixo, de forma centralizada, está escrito The Passenger. Na imagem seguinte, está em destaque o rosto em cor azul da criança, o mesmo da imagem anterior, enquanto à borda esquerda está um pedaço do céu laranja também da imagem anterior. Acima está escrito, em fonte de cor branca, Cormac McCarthy, Pulitzer Prize-winning author of the road. Abaixo, de forma centralizada, está escrito Stella Maris.
Após 16 anos de hiato, Cormac McCarthy lançará em 2022 dois romances inéditos (O Passageiro e Stella Maris), que chegarão às prateleiras brasileiras no final do ano pelo selo Alfaguara, do Grupo Companhia das Letras [Foto: Penguin Random House]
Um dos principais elementos que marcaram a concepção do romance – além das referências literárias e vivência do autor na cidade – foi o fato de que, embora tenha se mudado para Garopaba em 2008, Daniel Galera já conhecia o município como visitante. Seus pais, no período de juventude dos anos 1970, também frequentaram a região, e relataram experiências relacionadas às viagens. “Uma das histórias que eu me lembrava do meu pai ter falado foi que, uma vez, contaram a eles sobre uma figura da cidade que tinha causado problemas e assassinaram essa pessoa num baile dominical”, diz Galera.

A história diz que, com todos os habitantes da pequena cidade no baile, apagaram-se as luzes e esfaquearam o indivíduo; somente depois a iluminação foi restabelecida. “Isso foi uma espécie de justiçamento da comunidade”, diz Daniel. Não é absurdo pensar que a aura mítica em torno do protagonista de Barba ensopada de sangue ganhe forma além da ficção, embora a veracidade da narrativa se perca no emaranhado de meias-verdades que constituem todas as tramas da vida. “É uma história que contaram aos meus pais, e meu pai contou pra mim – nem dá pra saber se isso realmente aconteceu ou não, pode ser um causo sem fundamento. Mas o fato é que eu guardei essa história, e quando me mudei pra Garopaba eu me lembrei dela. Comecei a imaginar, se essa história fosse real, quem teria sido a pessoa que foi morta, e o motivo de terem matado”.

Galera: Juntei todos esses elementos que eu te contei e começou a vir a história desse professor de Educação Física que se muda pra cidade depois que o pai dele se mata, só que antes o pai dele conta sobre a morte do avô, morto em circunstâncias misteriosas em Garopaba, nos anos 1960. Todo esse embrião do romance, da história propriamente dita, vem dessa combinação de coisas. Aí entra o Cormac McCarthy, como um elemento de estilo, entra a prosopagnosia como uma característica definidora desse protagonista, que afeta a história tanto no nível do enredo como no nível da linguagem, do estilo como a história é contada. Como tu falou, essa atenção quase excessiva mesmo pros detalhes tem a ver com a forma desse personagem enxergar o mundo, relacionada também com a prosopagnosia.

Quando eu voltei para Porto Alegre, no final de 2009, comecei de fato a escrever o livro. Eu escrevi só o primeiro capítulo lá em Garopaba – que foi o capítulo que saiu na revista Granta –, o restante do romance eu escrevi já em Porto Alegre. O resto é junção de várias histórias, coisas que eu inventei e outros interesses como questões filosóficas sobre o determinismo; meu interesse, na época, pela filosofia da religião budista; meu interesse pela natação – esse aspecto do protagonista do livro, de ser apaixonado por nadar no oceano, é uma coisa minha. Eu sempre gostei muito de fazer isso, participava de travessias e tinha uma paixão por nadar no mar… Então, é um livro que, como uma esponja, absorve dúzias e dúzias de influências, leituras, relatos de coisas que eu ouvi falar, experiências pessoais. Um romance dessa magnitude – digo de extensão, complexidade – acaba pegando elementos dos mais variados tipos.

Foto colorida do escritor Daniel Galera. Na imagem, Daniel está olhando para a câmera. Ele é um homem branco, possui cabelos lisos e curtos, de cor castanha, e barba grisalha. Seus olhos são castanhos. Ele veste uma camisa de cor verde com botões pretos. O fundo da imagem é cinza.
“Os personagens não vêm assim de maneira muito imediata pra mim. São elementos da imaginação, interesses pessoais que vão se acumulando, às vezes por um período que demora meses ou anos” (Foto: Suhrkamp Verlag/The Paris Review)

Barba ensopada de sangue está sendo adaptado para o Cinema pelo diretor Aly Muritiba. No filme mais recente dele, Deserto Particular, chama atenção a existência de uma certa importância das paisagens, enquanto se mantém uma violência implícita, um fundo de mistério e um tom mítico que cerca a reconstrução de histórias comuns – características que eu consigo relacionar com o Barba. Queria que você comentasse um pouco sobre isso e essas relações.

Galera: Eu não vejo muita ligação entre o Barba ensopada de sangue e o trabalho anterior do Muritiba num nível de tema, de enredo, necessariamente. Mas eu acho que tem outras ligações muito interessantes de se pensar. A maneira como ele trata os personagens, e a construção de espaço que ele faz nos filmes dele, eu acho que tem muito a ver com o que acontece no Barba ensopada de sangue. É algo muito interessado nessa textura da vida real e numa psicologia dos personagens que não é maniqueísta, que não busca ninguém exatamente bom ou mau. As pessoas são complicadas, e tem aspectos iluminados e bacanas, mas aspectos também sombrios e, às vezes, desagradáveis. Ele é muito bom em construir personagens desse tipo e eu fiz muito esforço pra que no romance os personagens fossem assim.

O livro tem um protagonista que não é um cara legal, em todos os aspectos. Ele é muito estranho, complicado e às vezes uma pessoa que não necessariamente causa coisas boas aos outros. Acho que o Aly tem muita sensibilidade pra ver isso. E esse aspecto do romance que tem a ver com o retrato de um lugar e dos efeitos do progresso contemporâneo, das mudanças políticas e econômicas na vida de uma comunidade pequena, é uma coisa muito importante e eu acho que o Aly é muito bom também em olhar pra isso.”

“O que as pessoas fazem? Como elas vivem? À medida em que uma mudança ecológica, uma mudança política ou uma história do passado, uma superstição, afeta, de fato, o que as pessoas precisam fazer pra viver no seu dia a dia, pra tocar suas vidas. Eu acho que o Barba é muito feito dessas perguntas e desse olhar pra esses elementos da vida prática das pessoas, e acho que o Aly é muito bom nisso. Eu sou um grande fã do trabalho dele, então estou com expectativa de que ele vai produzir um ótimo filme.

Cena do filme Deserto Particular, do diretor Aly Muritiba. Na imagem, à direita, vemos um homem branco de costas, com uma faixa branca enrolada no braço direito, vestindo camiseta e calça de cor preta. Ele está num lugar que se parece com um deserto, repleto por terra, galhos e pequenos arbustos. O céu está acizentado, e ao longe é possível ver postes de luz e fios que os interligam.
Exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Deserto Particular foi a submissão do Brasil na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional em 2021 (Foto: Pandora Filmes)

Tem algum trecho do Barba que é o seu favorito? Ou alguma característica desse romance que, como autor e escritor, você considera mais importante?

Galera: Eu certamente tenho vários trechinhos que eu gosto muito até hoje, mas lembro de dois que consigo compartilhar assim, no calor da hora. Um deles é toda sequência da caminhada do protagonista pelos morros, quando ele ouve falar que o avô dele pode talvez estar vivo, como um ermitão meio louco que é visto, às vezes, nos morros da região de Garopaba, e resolve sair caminhando pra ver se por acaso encontra o avô ou pelo menos pra se sentir um pouco na pele dele. Gosto de toda a sequência dessa caminhada, que é justamente no mês de outubro de 2008, período em que houve chuvas muito fortes na região de Santa Catarina. Ele faz a caminhada bem nessa época.

E existe um parágrafo bem curtinho do livro, não sei dizer em que página, mas que comenta sobre as matilhas de cachorros de raça, cachorros grandes, que vivem soltas em Garopaba e ficam meio que circulando à noite, como cachorros meio espectrais. É só um parágrafo curtinho e é baseado um pouco em uma coisa real também. Muitos desses cachorros grandes, de raça, estão abandonados naquela região, e deve ser uma coisa que acontece em muitas praias e locais de férias. As pessoas levam cachorros pras férias e, às vezes, aproveitam pra se livrar deles, quando não aguentam mais cuidar. Fazem a crueldade de simplesmente deixar o cachorro e ir embora.

O resultado disso é que a gente vê rottweilers e pastores alemães transformados nesses cachorros meio magros, andando em matilhas. É um parágrafo só, que quem ler o livro ou procurar talvez encontre, mas é um trecho curtinho que me chamou atenção, e tem vários outros. Gosto da maioria das partes do livro. Eu mudaria algumas coisinhas pequenas, se eu fosse escrever ele hoje, mas não muito. Sou muito feliz com o resultado dele.

Capa da edição inglesa do livro Barba ensopada de sangue. Na imagem colorida, está escrito Blood drenched beard, a novel, de forma centralizada. Blood e Beard estão escritos em cor preta, e Drenched e A novel em cor vermelha. Abaixo, de forma centralizada, está escrito Daniel Galera em fonte de cor branca. À direita, está o logo da editora Penguin Books, que consiste em um penguim branco e preto dentro de uma forma oval em cor laranja. O fundo da imagem é um borrão de cores cinza, azul e sépia.
A edição em inglês de Barba ensopada de sangue foi saudada pelo jornal The New York Times (Foto: Penguin Books)

As incursões literárias de Daniel Galera se iniciaram ainda nos anos 1990, como editor e colunista de fanzines literários. Ele se formou em Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – não porque se interessava em propaganda, mas porque, à época, era o curso que concentrava as pessoas interessadas em “trabalhar com Cinema, com Artes Visuais, com Design, e acabavam indo parar no curso de Publicidade porque havia menos cursos especializados nessas áreas mais artísticas ou técnicas”. Interessado em computação, o autor acreditava que seria web designer. “Eu mexia com computador, sabia usar programas de design gráfico, de programação de internet, achava que seria o que na época se chamava web designer, ou que trabalharia com design de produto ou com design visual. Era isso que eu achava que iria fazer quando prestei vestibular”, diz.

Mas foi durante o período universitário que Galera começou a lapidar seu interesse pela Literatura. Ainda na graduação, uma disciplina chamada “Criação em Língua Portuguesa” foi, na prática, uma oficina literária dada pelos professores de Letras. “Me interessei imediatamente por escrever ficção – até pra conseguir os créditos, inicialmente, mas porque era uma coisa que eu gostava. Acho que foi ali que, conhecendo esses professores e conhecendo outros alunos da faculdade que também estavam interessados por escrever ficção – mas sobretudo escrevendo e mostrando os meus textos pra colegas e professores –, percebi que achava que tinha uma vocação e um interesse muito grande em escrever Literatura”, conta o autor.

https://www.tumblr.com/dentesguardados/666662303877496832/h%C3%A1-20-anos-criamos-a-editora-livros-do-mal-essas

Em meados de 1997 – momento de popularização da internet no Brasil –, Daniel Galera começou efetivamente a participar como colaborador e editor de uma série de fanzines eletrônicos e revistas digitais. “Teve uma que eu editei, chamada Proa da Palavra, que era só de Literatura. Pra mim, a escrita veio junto com essa prática de publicar os outros e se auto-publicar na internet, compartilha Galera. Então, em parceria com colegas de faculdade, criou o mail-zine CardosOnline (COL), que foi um pequeno fenômeno. “O CardosOnline foi famoso na época, a gente tinha milhares de assinantes no Brasil inteiro e isso me deu um público inicial. Tinha um pessoal que acompanhava esse fanzine e acompanhava o meu trabalho desde o início. Foi um incentivo grande”.

Pouco tempo depois, em 2001, em parceria com Guilherme Pilla e com o também escritor Daniel Pellizzari, Galera criou a editora Livros do Mal. A ideia era publicar em livro “alguns autores dessa nova geração que estavam surgindo na época”. Além de publicar nomes como Joca Reiners Terron e Paulo Scott, os seus primeiros livros também saíram pela Livros do Mal: a estreante coleção de contos Dentes Guardados (2001) e o romance Até o Dia em que o Cão Morreu (2003), que foi posteriormente relançado pela Companhia das Letras e adaptado para o Cinema. “Foram livros que eu publiquei de maneira independente; minha carreira começou assim. Não foi planejado, foi acontecendo organicamente. Vários caminhos e encontros que me fizeram perceber que era isso que eu queria fazer. Senti que eu tinha talento pra isso e comecei a vislumbrar que era uma profissão também.

Foto colorida do escritor Daniel Galera. Na imagem, Daniel está olhando para a câmera, com as duas mãos no bolso de trás de sua calça. Ele é um homem branco, possui cabelos lisos e curtos, de cor castanha, e barba grisalha. Seus olhos são castanhos. Ele veste uma camisa xadrez em cores rosa e branco. Ao fundo vemos diversas plantas de cor verde espalhadas em vasos.
“A Literatura é uma coisa da minha vida. Um gosto, um hobby, uma coisa muito importante”, compartilha Daniel Galera (Foto: Marco Antonio Filho)

Como funciona o seu processo de escrita?

Galera: Em geral, envolve um período bastante longo em que eu fico só pensando e tomando notas esporádicas dos assuntos que eu acho que podem virar ficção, um período muito longo de pensar no que escrever. Isso envolve, claro, um pouco de pesquisa, procurar leituras que tenham a ver com assuntos ou com estilos que estão me interessando, mas envolve, também, dar um tempo pra imaginação ficar gestando histórias e personagens. Os personagens não vêm de maneira muito imediata pra mim. São elementos da imaginação, interesses pessoais que vão se acumulando, às vezes por um período que demora meses ou anos.

Quando eu começo a escrever, em geral, já sei bastante bem o que eu quero fazer. A escrita do livro em si não costuma ser muito demorada, eu levo em torno de um ano pra fazer um romance. É o período que envolve escrever bastante mesmo, diariamente, e fazer bastante pesquisa que ainda não foi feita, ler muita coisa. Conversar com pessoas, visitar lugares. A gente precisa de subsídios pra aprender sobre um tema ou vivenciar algumas coisas que vão ser úteis pro processo criativo e pra composição da trama.

Digamos que, entre um livro e outro, tem um tempo médio de três, quatro anos, dos quais metade, pelo menos, eu não estou trabalhando no manuscrito, estou procurando a minha história por meio de exercício de imaginação, de anotações, de leitura, de pesquisa. É o momento que eu me encontro agora, por exemplo. Eu publiquei meu último livro [O Deus das Avencas] em junho do ano passado. Desde então, não escrevi quase nada, mas estou no processo de procurar o meu próximo trabalho. Estou sempre pensando na direção de um próximo romance ou de um próximo conjunto de histórias.

Foto em preto e branco da escritora Hilda Hilst. Na imagem, Hilda está inclinada em uma mesa, olhando para a câmera e segurando na mão direita um cigarro aceso. Ela veste uma camisa social branca e uma calça preta. Possui cabelos loiros. Ao fundo, há uma parede branca com quadros acizentados, além de uma estante com livros.
Daniel Galera elenca Hilda Hilst como uma de suas principais referências literárias (Foto: Instituto Hilda Hilst)

Você tem um livro brasileiro favorito?

Galera: Não acho que seja possível responder isso categoricamente, mas eu sou muito fã da obra da Hilda Hilst. Talvez os livros de ficção dela – seus textos de ficção em prosa – estejam entre as minhas coisas favoritas escritas por uma autora ou um autor brasileiro.

A Companhia das Letras, recentemente, editou a obra completa dela, em dois volumes: um de poesia e um de prosa; são duas caixas, na verdade, com dois volumes. E talvez seja o meu livro favorito. Se eu tivesse que escolher um só pra poder reler no futuro, acho que seria esse [com toda a prosa dela]. Já reli várias vezes os textos dela, inclusive essa edição nova tem um posfácio meu. Só me dei conta disso agora, mas fica mais um motivo aí pra quem se interessar.

Fluxo-floema foi uma das coisas que fizeram a minha cabeça como leitor também. 

Galera: Ah, foi? Então tu conhece bem do que eu estou falando. Eu sou apaixonado por esses livros de prosa dela. Já reli muitas e muitas vezes e nunca perde a força. Então, se a gente entender o livro favorito da Literatura brasileira como ‘se fosse obrigado a guardar só um pra poder reler no futuro’, se ficar dessa maneira, eu colocaria a prosa reunida da Hilda Hilst como esse livro.

Capa do livro o deus das avencas, de Daniel Galera. Na imagem colorida vemos uma arte abstrata, em cores rosa, verde, cinza, branco e roxo, que se assemelha a uma flor. À direta, está escrito em fonte de cor branca, Daniel Galera, o deus das avencas. Acima está o logo da editora companhia das letras, também em cor branca.
“Eu fui sentindo como o realismo acabou se revelando pra mim apenas mais um gênero, apenas mais uma convenção narrativa”, diz Daniel Galera (Foto: Alceu Chiesorin Nunes/Companhia das Letras)

Fazendo um paralelo entre seu último livro e o Barba ensopada de sangue, parece que já havia no Barba uma noção de um futuro perdido, algo que paira sobre a vida do protagonista, mesmo que por razões diferentes daquelas presentes no Deus das Avencas. No Barba, parece estar presente de forma mais subjetiva, enquanto no Deus parece surgir, principalmente, através das condições climáticas e políticas. Você consegue enxergar essa ligação? Se sim, como você lida, nos seus escritos, com essa sensação de “futuro perdido”, algo que parece ser um horizonte mas que, no capitalismo, nunca se concretiza?

Galera: Sim, eu acho que dá pra enxergar uma progressão, inclusive colocando nessa progressão o romance que está entre O Deus das Avencas e o Barba ensopada de sangue: o Meia-noite e vinte, que saiu entre um e outro, em 2016. O Barba ensopada de sangue foi concebido pra ser algo mais atemporal, digamos assim. Ele almeja ter uma estrutura e uma concepção um pouco mítica, uma história que representa um tipo de relação humana ou de experiência da condição humana que seria atemporal, uma coisa que viria pra qualquer época – questões de família, de heroísmo, de formação de identidade, de condição humana em geral. Embora se passe num lugar muito específico, numa época muito específica – e seja um romance, em grande medida, realista –, ele busca ter esse efeito. No entanto, se a gente lê com atenção, o Barba ensopada de sangue tem vários elementos ali sobre política, economia e, sobretudo, questões ambientais e ecológicas, que surgem como elementos de ambientação e de construção de espaço, de cenário.

É um livro que narra, por exemplo, como os pescadores artesanais estão perdendo o seu trabalho pra pesca industrial, e todas as consequências disso pra vida deles e pra economia da cidade. Ele narra como pessoas muito ricas, principalmente, acabam invadindo e ocupando lugares da região que deveriam ser preservados por lei, construindo na cidade e impondo uma urbanização ilegal e esteticamente terrível, e a forma como isso afeta a vida da região. Tem esses elementos ali no Barba, e enquanto eu escrevia esse romance não pensava num livro que fosse sobre esses assuntos, mas eram assuntos importantes pra aquele lugar, naquela época, então eles acabam aparecendo.”

Olhando pro Meia-noite e vinte, que é o romance seguinte, que saiu quatro anos depois, já é um livro em que essa questão do fim do mundo e das catástrofes políticas e ecológicas se coloca de uma maneira muito violenta. Ele é um livro sobre isso, sobre como a sensação de que esse mundo construído pelo progresso, pela modernidade, está ruindo no novo milênio, e como isso afeta as expectativas de vida de um grupo de quatro pessoas que eram jovens na virada do milênio e agora são adultos com família, profissão e carreira estabelecida, mas que, assim como todas as expectativas e os sonhos deles pro futuro, estão sendo destruídas pelo rumo político, econômico e cultural da civilização. Então, sim, o Meia-noite e vinte já é um livro sobre esse tema, das crises contemporâneas e da destruição das noções conhecidas do futuro. Ou da substituição por outras outras visões de futuro que eram muito novas e um pouco ameaçadoras.

Capa do livro Meia-noite e vinte, de Daniel Galera. Na imagem colorida, vemos um fundo borrado, em cor azul, cinza e branco. À direita, escrito em forma de pontilhado e em cor vermelha, está escrito daniel galera. Abaixo, em fonte de cor branca, está escrito Autor de Barba ensopada de sangue, seguido por Meia-noite e vinte. Mais abaixo, à direita, está o logo da editora Companhia das Letras em cor cinza.
Meia-noite e vinte retrata com maestria a geração que cresceu nos anos 1990 (Foto: Alceu Chiesorin Nunes/Companhia das Letras)

Galera: Desse romance, eu depois fui pro Deus das Avencas, publicado cinco anos depois, que é essa reunião de três novelas em que a ideia de fim do mundo e as catástrofes contemporâneas são levadas a um outro patamar, mais especulativo – ou seja, já projetando pra um futuro próximo e também não próximo, um futuro distante, no caso da terceira novela, Bugônia. São possíveis desenlaces das crises do presente, ou pelo menos situações ficcionais que tentam elaborar o significado das crises do presente por meio de uma imaginação mais fantasiosa, situada num futuro distante.”

Se a gente observar, tem uma progressão um pouco coerente entre o Barba, o Meia-noite e vinte e O Deus das Avencas. Acho que são saltos bem longos entre um livro e outro, na abordagem desse tema das crises contemporâneas e da crise do futuro. Não foi planejada dessa forma, claro. É uma coisa que eu só consigo perceber também como tu e como outros leitores ao olhar pra trás, mas sem dúvida se vê nesses três livros o despertar do meu interesse e da minha preocupação com esses assuntos, e depois o agravamento e a elaboração cada vez mais complexa, em termos de experiência e também de conceito dessas questões, pra mim, e como isso foi se transformando em ficção ao longo desses anos.”

Fotografia colorida do rompimento da barragem em Brumadinho. Na imagem, retirada de cima, é possível ver uma área repleta por lama de cor marrom. Ao fundo, é possível ver uma enorme área verde.
O rompimento da barragem em Brumadinho (MG), controlada pela empresa Vale – antiga Vale do Rio Doce –, caracterizou o maior acidente de trabalho na História do Brasil, e um dos maiores desastres ambientais do país [Foto: Vinícius Mendonça/Ibama]
Poucos meses depois do rompimento da barragem em Brumadinho, que ocorreu em janeiro de 2019, Daniel Galera teve publicado na revista Serrote o ensaio Ondas catastróficas, no qual reflete sobre a dificuldade de manter a narração realista em meio às influências das imagens de catástrofe veiculadas diariamente. No texto, o autor analisa o lugar desse “realismo” na Literatura contemporânea. “Eu acho que o tipo de excesso e de fenômeno complexo que a gente está vivenciando no presente – em escalas globais, planetárias e universais – acaba revelando o quanto aquilo que a gente entende como ‘realismo’ sempre foi uma convenção narrativa também. A realidade mesmo se tornou muito inapreensível, mesmo com as técnicas do realismo. Parece que tudo escapa às convenções do realismo”, diz. O Deus das Avencas ganhou forma como um resultado dessas reflexões.

É curioso pensar que, no mundo frenético e absurdo da contemporaneidade – em que a realidade vem competindo de igual para igual com as distopias e a ficção especulativa –, a noção de realismo seja colocada em xeque, devido a uma imposição quase silenciosa das interações sociais por meio da tecnologia. “A gente vive num tempo que, pelas características culturais, tecnológicas – a própria textura do dia a dia, mediado pelas tecnologias digitais –, tudo nos força a reformular um pouco o que merece ser narrado e como merece ser narrado. Porque algumas coisas se tornaram simplesmente redundantes ou sem sentido. As comunicações pessoais, por exemplo, hoje são feitas quase estritamente por meio de WhatsApp, de celulares, de computadores, de telas… Como é que a gente narra isso? Como é que a gente escreve realisticamente sobre isso?”, reflete o escritor.

“Às vezes a fantasia, a ficção científica, o horror, nos dão uma textura e um tipo de emoção e de experiência estética que captura com mais potência a experiência de viver neste presente.”

Esse realismo – para além das convenções de escrita e de gênero literário – encontra ressonâncias no que Mark Fisher chamou de “realismo capitalista”, em sua obra homônima de 2009 na qual reflete que, sob a nova roupagem neoliberal do sistema econômico, parece ser mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. É sob essa perspectiva que Tóquio, segunda novela da coletânea O Deus das Avencas, parece ganhar espaço, pois em meio às crises ambientais retratadas na trama, os indivíduos buscam uma transcendência do corpo (nesse aspecto, as similaridades com Zero K [2016], de Don DeLillo, também se mostram visíveis). O interessante é perceber que, mesmo retratando histórias sobre fins – de um possível bem-estar social a um mundo pós-apocalíptico –, Daniel Galera jamais recorre a clichês.

A novela que dá título à coletânea, embora em um formato mais realista – que contempla o aspecto do trabalho anterior do autor –, foge de qualquer percepção alienada da realidade dos protagonistas Lucas e Manuela, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Por fim, as reflexões sobre a representação não devem se encerrar no novo formato explorado pelo escritor: “Depois de O Deus das Avencas, estou num impasse, porque eu não sei se dobro a aposta nesse caminho ou se eu vou pra algum lugar inteiramente novo, que não trabalhei ainda.

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