Guilherme Veiga
Shakespeare, em 1600, já dizia que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia, e a frase ainda se faz presente, considerando os questionamentos do ser e do meio em que ele vive. É levando em conta uma dessas questões que Em Nome do Céu, nova aposta da FX no gênero true crime, escondida no catálogo do Star+, se desenvolve.
Baseada no best-seller homônimo de Jon Krakauer, e desenvolvida para a televisão por Dustin Lance Black, vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original com Milk, a minissérie conta a brutal história real ocorrida em uma comunidade mórmon de Utah em 1984, em que uma mulher e sua filha foram assassinadas dentro de casa. O crime teve como motivação a doutrina e as vertentes fundamentalistas de alguns membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mais especificamente o conceito de “expiação de sangue”. Em linhas gerais, a atrocidade foi, a princípio, tratada como algo “cometida em nome de Deus”.
Black, que foi criado como mórmon, lança um holofote sobre a característica e propositalmente desconhecida religião. Divida em três linhas do tempo, Under The Banner of Heaven (nome original da minissérie), mais do que a investigação criminal convencional do gênero, foca seus mistérios nos dogmas e crenças da doutrina, com o intuito de destrinchá-los. Para estimular esses questionamentos, a obra usa Jeb Pyre, personagem de Andrew Garfield (O Espetacular Homem-Aranha, Os Olhos de Tammy Faye), criado exclusivamente para a adaptação audiovisual e que dá vida a um detetive mórmon em um conflito de ideais mediante o caso.
A primeira linha do tempo – de longe, a mais interessante – é a que foca justamente no núcleo de Pyre em busca da solução do crime. Aqui fica nítido como o show bebe das melhores fontes da vertente investigativa, como True Detective e Mare of Easttown. Desde o clima soturno da trama até a maneira com que a narrativa se desenvolve, há muita consciência em replicar esses aspectos e adaptá-los ao seu universo. É possível imprimir isso em tela graças a atuação de seus personagens.
Garfield, que se prova um dos atores mais promissores de sua geração, consegue transmitir toda a carga que está sendo depositada em seu personagem de forma muito sutil e serena, carregando a série nas costas. Tanto que sua indicação ao Emmy 2022 em Melhor Ator em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme, a única da obra, mesmo que sem tantas chances, é mais do que justa. Parte do elenco ainda conta com Gil Birmingham (Terra Selvagem, Yellowstone), que interpreta Bill Taba, detetive que divide as investigações com Garfield. Em uma atuação concisa, Taba está aqui para representar o ceticismo do espectador e funciona como um contraponto aos mórmons. É através dele que as perguntas da audiência são transmitidas para o enredo.
A segunda linha do tempo foca na história dos Lafferty, família envolvida no assassinato de Brenda Wright Lafferty, cerne da trama. É através desse núcleo que a crítica e os estudos acerca da religião se desenvolvem. Fica muito claro o tato que Dustin Lance tem ao tratar do tema, explorando as hipocrisias que as crenças, em seu fundamentalismo, carregam. Para isso, o texto constrói um suspense latente, fazendo com que essa família e suas concepções ortodoxas se aproximem aquilo que Jordan Peele realizou com a família Armitage em Corra.
Tratar de religião, em suas mais variadas abordagens, tem sido uma pauta recorrente no audiovisual, a exemplo de Mal, do Paramount+, e Missa da Meia Noite, da Netflix. Seguindo a fórmula dessas produções, Under The Banner of Heaven consegue abordar o tema não o ridicularizando, mas sim tocando na ferida e nos pontos que devem ser tocados, algo que provocou certa repulsa por parte da comunidade mórmon. Contudo, a série opta por não usar metáforas monstruosas para dar lugar às monstruosidades do ser humano, guiado pela cegueira ideológica.
É um núcleo bem desenvolvido, e acompanhar sua evolução na trama é agonizante. Isso se dá em grande parte pela construção do elenco em seus personagens. Daisy Edgar-Jones (Normal People, Fresh), intérprete de Brenda, é quem, ao lado de Garfield, traz os holofotes para si e consegue fazer com que o progressismo de sua personagem destoe em meio ao conservadorismo dos Lafferty. Sam Worthington (Avatar), Wyatt Russell (O Falcão e o Soldado Invernal), Billy Howle (Dunkirk) e mais um dos irmãos Culkin, Rory (Sinais), conseguem construir personas distintas para cada irmão da família Lafferty, mas todos de forma assustadora e com sua dose de obscurantismo.
A última linha do tempo é a que mais peca na produção. Contando a história de Joseph Smith na fundação da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mesmo que tendo um enorme impacto na trama, parece um episódio genérico de documentário do History Channel. Por ser um núcleo majoritariamente expositivo, é através dele que fica claro as barrigadas de seu roteiro. Com sete episódios que beiram uma hora de duração, é bem perceptível as partes nas quais o texto se alonga mais do que devia, e grande parcela disso está no terceiro e último trecho.
Ao longo da trama, o show consegue trabalhar muito bem com a subjetividade, como, por exemplo, transmitindo a agonia de um assassinato brutal sem ao menos mostrar violência explícita. Portanto, essa linha do tempo, por ser tão explicativa, fica descolada de todo o resto da história, quando seus conceitos poderiam facilmente ser incluídos no segundo núcleo. Além disso, na tentativa de remontar o século XIX, seu design de produção é muito piegas, fazendo com que, mesmo que sua intenção seja totalmente o oposto, pareça uma produção promocional dessa religião.
Under the Banner of Heaven consegue ser instigante, emocionante e inventiva naquilo que se propõe. Seu estilo de narrativa e sua direção, apesar de se prolongarem em certas partes, prendem o espectador em uma história que, mesmo baseada em fatos, a princípio é absurda, e conduz uma viagem que começa no mistério e termina no porquê. A obra, capitaneada pela direção, de David Mackenzie (Hell or High Water) e Courtney Hunt (Frozen River), é um ótimo exercício de imersão e de desenvolvimento da trama.
Dentro das fórmulas de true crime, o seriado joga os holofotes na linha tênue entre o literalismo das escrituras e as (des)ilusões de figuras messiânicas. Mesmo abordando a religião, a série não cai no senso comum de apenas estigmatizá-la, mas sim de derrubar suas máscaras e escancarar a opressão e a ameaça que o fundamentalismo teocrático pode causar. Por isso, Under The Banner of Heaven é um retrato cru de uma era de extremismos – não só religiosos – que ainda persiste.