Aryadne Xavier
Ao lançar Toy Story 1 em 1995, a Pixar foi muito além da proeza de fabricar o primeiro filme de animação longa-metragem totalmente produzido em um computador. Após quase 30 anos, o longa segue sendo um dos maiores clássicos do Cinema e um marco em toda uma geração que cresceu assistindo aos desenhos do estúdio. Anos e sucessos de bilheteria depois, a fórmula do sucesso pode ser descrita, de maneira simplória, como um casamento entre a inovação visual e a profundidade de suas histórias. Indo além de apenas um show técnico, as jornadas de seus personagens sempre foram cativantes e relacionáveis com o público, trazendo aquilo que era contado na tela próximo de quem assistia, emocionando e conectando com multidões.
Com o tempo, a técnica foi se transformando, deixando de focar em apenas uma jornada e ambicionando a criação de um universo inteiro em duas horas de produto final em que, entre erros e acertos, muitas coisas poderiam ser pontuadas. Talvez o maior sucesso nessa lógica tenha sido Divertida Mente (2015), acompanhando de perto a mente da pequena Riley. Tentando replicar o mesmo método de sucesso em Elementos, o estúdio foi pego então pela sua maior armadilha: a balança desigual entre técnica e humanidade. E na tentativa de conciliar os gráficos e a química impecável por trás do seu visual, o filme peca ao deixar de lado sua premissa original em prol de um romance que brilha aos olhos e até emociona, mas não leva muito ao coração.
A premissa de Elementos surge em um contexto interessante: buscando criar uma condição de vida melhor para sua filha, Brasa e Fagulha deixam a Terra do Fogo em direção a Cidade Elemento. A pequena garota nasce, cresce e cultiva dentro de si a vontade de assumir a loja dos pais, agora já mais velhos. A questão da imigração, no começo do filme, é abordada de maneira objetiva, mesmo se tratando de um universo alegórico, criando uma conexão com quem vive ou já viveu essa mudança para um novo lugar. Na cidade onde se passa a maior parte da obra, é notória a crítica à forma como imigrantes são tratados, com desprezo e descaso total da estrutura, que os segrega em uma parte do território e não abre brechas para que as pessoas possam demonstrar suas diferenças e todo o talento e possibilidades que nascem disso.
Faísca, a filha de Brasa e Fagulha, é uma protagonista que carrega em si muitos dilemas e questionamentos relacionáveis. Mesmo ao perceber que não é seu o sonho assumir a loja da família, ela se coloca no lugar de pagar esse sacrifício por se sentir em dívida pelo que seus pais fizeram por ela a vida toda. Esse talvez seja o maior acerto: tratar a relação de pais e filhos de maneira direta e não romantizada, algo já realizado de outras maneiras em animações anteriores. A capacidade da Pixar de esmiuçar e transbordar nos gráficos os pensamentos e angústias da personagem criam ali uma atmosfera marcante, que demonstra toda a substância do material. No entanto, ao nascer de outro personagem, toda essa ideia parece ficar em segundo plano, deixando um romance brilhar.
Gota é um personagem adorável. Carismático, sincero e carinhoso, ele demonstra e sente até demais. Seu encontro com Faísca é, em todos os sentidos, fascinante. É como acompanhar uma história de amor que nasce aos poucos e se desenvolve prendendo a atenção do espectador. Um amor proibido, porque água e fogo nunca se misturam, deixa a emoção ainda mais para cima. E, em níveis de romance, Elementos acerta em cheio no relacionamento fofo (e até meio brega), mas muito bem feito. Talvez de um breve enemies to lovers, o roteiro ainda sustenta a emoção ao demonstrar como esse sentimento vai aumentando tanto quanto as dificuldades que distanciam o casal.
Os gráficos dos dois, quando próximos, elevam o nível técnico do estúdio ainda mais. O trabalho com elementos tão únicos é pura química e transborda nos olhos de quem vê. O desenvolvimento desses personagens, da mesma maneira que o de secundários como Névoa (chefe do Gota) e Turrão (personagem do elemento terra que possui uma ‘paixonite’ por Faísca), soma como uma grande fortuna do projeto. O filme pode deixar talvez uma mensagem de que mudou sua temática no curso do projeto, mas, se olhado minuciosamente, Elementos fala do início ao fim sobre o amor. O amor de pais pelos seus filhos, romântico, platônico e até mesmo pela profissão que exerce. Do primeiro minuto ao último, amar é o verbo que dita todos os cursos da história.
Em seu original, a animação ainda conta com a narração de Leah Lewis como faísca e Mamodou Athie como Gota, um elenco de peso que contribuiu ainda mais para a temática da diversidade, sendo ela chinesa e ele mauritano-americano. Se por um lado, a contratação atingiu um ponto magnífico, no quesito sonoro o filme deixa uma lacuna, não contando com nenhuma faixa viciante que fique na cabeça do espectador dias após a sessão, feitos conquistados com louvor por seus predecessores Coco (2017) e Toy Story.
Em 2024, Elementos concorre como Melhor Animação na premiação ‘queridinha’ do Cinema, o Oscar. Contradizendo o título de pior bilheteria da Pixar, a produção alcança a disputa contra O Menino e a Garça, o mais novo longa do Estúdio Ghibli que vem sendo cotado como favorito após o sucesso estrondoso na crítica e em outras premiações; Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, sequência muito aclamada da obra que mudou a maneira de produzir animações; Nimona, que obteve sucesso ao questionar convenções de heróis e vilões; e Meu Amigo Robô, que agrada de crianças a adultos com uma trama de muitas camadas. Mesmo no meio de gigantes, Elementos ainda possui seu charme, sua técnica extraordinária e a leveza de abordar assuntos pertinentes e identificáveis em uma trama que nos faz mesmo sorrir após umas lágrimas terem escapado.
Trazendo pontuais reflexões profundas, Elementos é um filme que retrata diversidade e que depende das experiências individuais de cada telespectador para poder se entrosar intimamente. Em alguns, causa empatia pela familiaridade com a situação e, em outros, causa apenas um carinho pelo romance ou talvez uma apreciação pelo visual. Contudo, não se pode dizer que o produto não vale de nada ou não rende, ao mínimo, uma distração agradável por quase duas horas em uma tarde entre amigos, sendo um show de cores, técnica e um romance gostoso de assistir.