Guilherme Dias Siqueira
11 de Setembro marca o aniversário de uma das grandes tragédias ocorridas nas Américas, algo tão terrível e tão brutal que seria lembrado não só nas aulas de história, mas no profundo subconsciente de um povo inteiro. Há 50 anos, no Chile, um presidente era assassinado, o palácio presidencial bombardeado, uma ditadura se iniciava e por trás dela, um homem se tornava ditador. Embora todos eles sejam, sem exceção, meros mortais feitos de carne, osso e vísceras, como todos nós, quando tomamos conhecimento das barbaridades as quais esses mesmos humanos tiveram a capacidade de perpetrar, passamos a enxergá-los como monstros.
Não há nada mais adequado que comparar alguém que suga vidas de seus oponentes a um vampiro, na visão dos roteiristas de El Conde, Pablo Larraín e Guillermo Calderón, Augusto Pinochet é um monstro dos clássicos filmes de terror dos anos 1930. Com mais de 200 anos de vida, o general viveu assombrando revoluções por décadas ao redor do mundo até parar no Chile e lá, após acusações de crime contra a humanidade e corrupção (aparentemente ele não se incomoda tanto com a primeira) ele decide se isolar com sua família em uma fazenda.
Um dos dois representantes chilenos no Oscar, El Conde é uma obra satírica e humorística, e, apesar do enredo bastante criativo, poderia passar despercebida pela Academia, não fosse o seu imenso valor estético. A indicação a Melhor Fotografia pelo trabalho de Edward Lachman é uma recompensa justa a uma filmagem que assombra, é soturna e sabe explorar com precisão um recurso antigo – o preto e branco. No filme, o efeito é reimaginado para possuir uma certa liquidez. A ideia é que a Santiago moderna com seus arranha-céus de vidro possa parecer tão assustadora quanto um castelo medieval assombrado.
O longa-metragem desfruta ainda do uso da simetria como uma forma de causar um certo deslumbre aterrorizante, de dar inveja a tantos filmes de terror que pecam pela falta de sutileza. El Conde explora o medo do escuro, o medo de um ser que não grita para assustar, apenas sua aparição já é o suficiente para saber que o mal encarnado está presente. A mistura de terror e comédia não é nova na Sétima Arte, porém a produção eleva a mistura a um novo patamar, se de um lado a comédia é ácida, cítrica, o terror tem um gosto de metal enferrujado próprio do sangue.
Parece estranho dizer que quase em meados da década de 2020 fazer alguém voar em um filme seja algo impressionante e grandioso, mas aqui os movimentos no ar podem representar um poder absoluto e apavorante ou até mesmo uma certa leveza. A mistura de capas compridas e sombrias de um vampiro, os véus ultra brancos de uma freira ou quepe de general fazem o figurino parecer pesado e inadequado, como se prendesse os personagens deslocados de seu tempo.
O tom decrépito da película também influencia a trilha sonora, planos e perspectivas das câmeras do diretor Pablo Larraín e é como um lembrete de que os horrores de uma ditadura não podem ser esquecidos. É um recado de que seus algozes estão sempre à espreita, à espera da noite, da oportunidade de se levantar de um caixão. De que se na ficção eles devoram corações, na vida real, políticos populistas devoram os cérebros da população em busca de poder e dinheiro.
As atuações são excelentes: Jaime Vadell faz um moribundo Pinochet cheio de vícios e que acaba se apaixonando pela freira Carmen, interpretada com bastante destreza por Paula Luchsinger. Um destaque curioso é a aparição de uma antiga aliada de Pinochet, a “dama de ferro” Margaret Thatcher, ex premier britânica que também tem sua versão monstruosa, interpretada por Stella Gonet.
El Conde é mais uma vez um sucesso latino-americano ganhando destaque ao expor as veias abertas do continente. Os cineastas latinos não perdoam os vampiros autoritários que se deleitam dessas veias, diferentemente de uma certa conivência daqueles que em busca de moderação optaram por eximir de culpas os piores criminosos, que roubaram mataram e torturaram e acabaram por ser anistiados e gozaram de privilégios durante a transição para a democracia. O filme pode até estar próximo do prêmio em Hollywood, mas tem conexões profundas com o nosso Brasil.