Ayra Mori
Desde a vitória histórica da produção sul-coreana de Bong Joon-Ho, Parasita, na categoria de Melhor Filme no Oscar 2020, a Academia tem-se tornado, ainda que bastante acanhadamente, aberta para a quebra dos paradigmas além-Hollywood. Em 2021 vimos a segunda diretora e primeira mulher não-branca, Chloé Zhao, a levar a estatueta de Melhor Direção, e em 2022, parece ser a vez de Drive My Car (do original Doraibu mai kâ, sem título traduzido no Brasil), submissão oficial do Japão indicada a quatro categorias na premiação desse ano, incluindo Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Direção para Ryûsuke Hamaguchi e Melhor Roteiro Adaptado, co-escrito pelo diretor com Takamasa Oe. Mas não se engane, Drive My Car não é o novo Parasita (!).
Os filmes compartilham nada além do fato de que ambas são produções originárias de países do leste asiático a receber a grande indicação da noite pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Apenas. A primeira evidência disso é o ritmo pacato da produção nipônica adaptada de um conto homônimo do escritor Haruki Murakami e com inspiração em outros dois contos do mesmo livro – Sherazade e Kino. São quase três horas de duração que, a princípio, parecem ser injustificáveis. Contudo, passados quarenta minutos do preâmbulo, o final do longo túnel começa a se revelar, sem pressa.
Na cama, somos apresentados à dinâmica íntima do casal formado por Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um veterano ator e dramaturgo, e Oto (Reika Kirishima), uma roteirista de TV. Na cena, Oto murmura para o marido, em transe, curtas histórias inventadas por ela. Como uma Sherazade contemporânea, o ritual silencioso se revela um hábito pós-sexo dos cônjuges, amarrados em interdependência um ao outro na impassibilidade do cotidiano rígido. Na superfície, a vida deles juntos é tranquila e parece ser feliz; enquanto nas entranhas, borbulham ânsias reprimidas: Kafuku precisa das histórias da esposa, então convenientemente cobre a vista. Ela, as narra encarando o vazio da parede com os olhos bem abertos.
“Ela inspira. Ela ouve com atenção. Ela ouve o silêncio. Um silêncio amplificado, como o som através de um aparelho auditivo, enche a sala. Ela se deita na cama de Yamaga. Ela segura a vontade de se masturbar.”
Ela é infiel e ele sabe – ao mesmo tempo que não sabe de nada. O casamento deles se definha e como um completo mistério, prestes a encarar a verdade, Oto subitamente falece, deixando Kafuku sem qualquer resposta. A partir disso, após dois anos, se inicia de fato o caminho penoso de Drive My Car. O viúvo, ainda adormecido pela perda da esposa, chega em Hiroshima a convite, dirigindo o seu querido Saab 900 vermelho, para conduzir uma nova produção de Tio Vânia, do russo Anton Chekhov, no festival de artes da cidade.
Com risco de perda da visão, Kafuku, em Hiroshima, conhece a introspectiva Misaki (Tôko Miura), jovem motorista incumbida da missão de conduzir o dramaturgo pela palidez da cidade enquadrada. Pelas vias, a companhia é assombrosamente muda. Nenhuma palavra se levanta, com exceção da voz morta de Oto que ecoa pelo automóvel através de falas de ensaio gravadas por ela como um último totem para o marido. Dentro do carro estão Kafuku, Misaki e o fantasma de Oto. Porém, diante do enigma interminável dos segredos sepultados pela falecida, Hamaguchi se afasta do espírito especulativo para mirar fixamente o palco no qual se dará a montagem multilíngue em produção.
No reencontro com Chekhov, a atuação obriga cada protagonista a encarar as próprias emoções pelo reflexo de suas personagens a serem interpretadas. Na incomunicabilidade dos atores, a Arte assume o papel determinante para exteriorizar tudo aquilo que não se ousa dizer. Durante a rotina de ensaios metódicos da peça, as tramas se ramificam em expansão entre os atores: o impulsivo galã Takatsuki (Masaki Okada), que foi amante de Oto, também atormenta-se pela busca frustrada por resoluções; a atriz muda Lee Yoo-na (Park Yu-rim), que para superar seus traumas com a maternidade volta a atuar, comunicando-se por sinais; até a motorista, que lida com as próprias angústias.
Com palavras ditas ou não, cada sentença de Tio Vânia processa os traumas de cada agente da peça. O idioma dos atores vai do japonês, inglês, mandarim, coreano, russo até língua coreana de sinais – nenhum ator fala a mesma língua. Essa barreira linguística, porém, é burlada pela atuação e pela universalidade da Arte como uma Torre de Babel bem-sucedida. No palco, cada fala de Chekhov dita “arrasta o verdadeiro você”, comunicando toda a confusão, raiva, lamentação sobre o tempo perdido que jamais será reconquistado e, em contrapartida, à redenção exorcizante dos demônios montados sobre as costas dos protagonistas.
Drive My Car não se apressa, esbarrando, gradativamente, por breves relances de beleza encontrados pelo ordinário da paisagem acinzentada. Dentro do carro, o tempo para. O aparato avermelhado dilata os limites do espaço-tempo, transfigurando-se em um confessionário para as almas solitárias que ousam sentar-se nos seus quatro bancos. Nele, em uma longa sequência claustrofóbica, Takatsuki conta para Kafuku, a última história narrada por Oto. Atravessando um túnel em um duelo taciturno, viúvo e amante se confrontam, para que a escuridão quase total da noite permitisse penetrar-se por feixes de luz esmaecidos, próximos do fim do caminho.
E revelado o mistério, pela primeira vez, Kafuku ultrapassa a barreira invisível que separa o banco do motorista com o do passageiro. Assim, desafiados os limites e sozinhos no carro, os estranhos podem finalmente compartilhar um fugaz momento de calor. Duas mãos se levantam para o teto solar a 10 centímetros uma da outra. E por mais singelo que o enquadramento pareça, ele é carregado de ânsia. Uma ânsia angustiante de se conectar entre o oceano de desconhecidos, nem que esse momento dure curtos trinta segundos. Para aqueles que sobrevivem pensando nos mortos, com o tempo, tudo passará. Em Drive My Car a verdade dói, mas nada dói mais do que a verdade não dita.