Leticia Stradiotto
Não é novidade que o memorável O Iluminado seja peça-chave nas principais produções cinematográficas do Terror. Apesar da rejeição de Stephen King – escritor da obra literária – o filme é um trabalho espetacular e extremamente agonizante de Stanley Kubrick, que trouxe à realidade a insanidade e as perturbações mundanas. A fim de realizar uma adaptação correspondente aos livros, King apostou suas obras em mais uma produção fílmica: Doutor Sono (2019), que oferece não só uma continuação, mas, também, explicações deixadas para trás no filme de 1980.
Após o ocorrido no isolado Hotel Overlook envolvendo machados, tentativas de homicídio, loucura e o que há de pior, o pequeno Danny, filho do perturbado Jack Torrance (Jack Nicholson), está de volta e, obviamente, com muitos traumas. Agora, ele é um adulto alcoólatra em busca de reabilitação. Interpretado por Ewan McGregor, Dan se muda para uma pequena cidade e consegue lidar melhor com suas angústias passadas. Por ter a habilidade de sentir quando alguém está perto da morte, o iluminado inicia trabalho em um hospital onde ajuda pacientes terminais, a passar dessa para uma melhor, de forma tranquila, explicação do nome Doutor Sono. Tudo nos conformes, até a chegada de comunicações telepáticas na mente de Dan.
O grupo Verdadeiro Nó, formado por “caçadores de almas”, fazem delas o seu alimento. No entanto, a preferência são de almas iluminadas, retratadas como vapores e, quanto maior a jovialidade do ser, mais puro será o vapor a ser consumido. Com uma série de ocorrências sobre o desaparecimento de crianças – cruelmente capturadas pelos caçadores até a morte mais lenta e dolorosa possível – a garotinha Abra (Kyliegh Curran) é o próximo alvo, pois possui “o vapor” mais poderoso que já encontraram até então, e assim finalmente, seria capaz de saciar o grupo inteiro por longas décadas. Mesmo sem se conhecerem, Abra e Dan já estão relacionados entre si.
É interessante perceber a presença de outras obras de Stephen King na criação de narrativas. Se analisado com clareza e perspectiva, é fácil dizer que o escritor constrói um multiverso literário e, logo, cinematográfico. Por exemplo, em Doutor Sono, a iluminação dos seres é o que gera o “vapor”, e a saborosidade dele é medida a partir da quantidade de medo presente no corpo, assim como em It – A Coisa, onde o palhaço Pennywise utiliza a mesma armadilha do medo para manipular e sequestrar crianças. Agora fica a reflexão, qual é a conexão maior entre tudo isso?
Em uma trama um tanto quanto confusa, o famoso diretor Mike Flanagan sabe como conduzir a obra e o resultado é um filme extenso, mas isso não é motivo para tédio, já que a sequência de acontecimentos e o gosto pela resolução te prendem do começo ao fim. Com um esquema de nostalgia e referências ao passado, a produção utiliza de vários elementos do primeiro longa, O Iluminado, trazendo novamente para as telas as lembranças perturbadoras do Hotel Overlook.
Se, em 1980, Kubrick não teve o embasamento para retratar as características pessoais dos personagens, Flanagan retoma tudo de maneira fluida e adiciona mais humanidade aos que estão presentes e aos que ainda irão marcar presença. A maléfica Rose (Rebecca Ferguson), uma das principais caçadoras, ganha enorme destaque em Doctor Sleep, através de uma apresentação assustadora e realista da crueldade em seus piores extremos. A atriz afirma que gravar a cena do sequestro e assassinato com o pequeno jogador de beisebol foi de extremo impacto pessoal, pois os gritos da criança eram desesperadores. É quase impossível assistir a Doutor Sono e não ter pensamentos conturbados durante o resto do dia.
Com as diversas referências diretas a The Shining, é possível retirar de Doutor Sono a torturante presença do passado, e que ele sempre estará ali, para nos ensinar algo, ou, então, nos assombrar para sempre. O destino é importuno e grudento, por mais que Dan tenha sobrevivido cerca de 40 anos sendo um iluminado, esse poder será carregado para vida inteira. E com grandes poderes vem grandes responsabilidades, lidar novamente com abalos psicológicos, agora com a presença da pequena Abra, é desafiador e, no mínimo, horripilante.
Apesar do bom desenvolvimento do enredo, o final chega a ser prolongado demais e sem a devida necessidade. Um dos motivos para a conclusão tão pacata é a distância narrativa com o que, de fato, acontece no livro. O longa acaba totalmente solto e sem explicações sobre a recuperação de Dan e o seu relacionamento inquietante com seus próprios traumas e demônios. De qualquer forma, Doutor Sono é um ótimo filme de terror, sabe muito bem trabalhar com a perturbação e o temor do telespectador. Stephen King mais uma vez nos faz questionar: até onde vai a insanidade humana?