Enrico Souto
Rico Dalasam foi o primeiro rapper gay a ganhar grande projeção na cena do hip-hop nacional, e um dos principais expoentes do gênero queer rap no Brasil, que contudo hoje se mostra um termo limitado demais para o que ele representa. Em suas palavras, “depois que você lança uma música e vai existindo, as coisas tomam caminhos que uma tag não suporta”. E acredite, nenhuma tag suporta Dalasam. E caso ainda houvesse dúvidas, Dolores Dala Guardião do Alívio vem para cravar o artista como um dos nomes mais relevantes da música brasileira atual.
Emicida, em entrevista ao Roda Viva em julho de 2020, ao ser perguntado sobre o envolvimento da comunidade LGBTQ+ no movimento do hip-hop, citou Rico, que colaborou com o rapper em Mandume, como “um dos melhores letristas que nós temos hoje”. E de fato. Depois de alguns anos de hiato e polêmicas que reverberam até hoje, o cantor e compositor retorna com os dois pés na porta com um álbum extremamente conciso, maduro e de identidade visual marcante, acompanhando 11 faixas e um curto clipe de quase 2 minutos que introduz as temáticas abordadas no disco e sintetiza a mensagem proposta.
Anteriormente lançado como um EP de cinco faixas em maio de 2020, dessa vez sua premissa é elevada à décima potência, transformando-se em uma experiência imersiva e em uma viagem pelas emoções, vivências e pensamentos do autor, resultando no trabalho mais sensível e intimista de sua carreira, e com certeza um tiro acertado. O disco, de cerca de 26 minutos, pode até ser consideravelmente curto para a duração padrão de um LP hoje, mas, em compensação, ele não tem uma grama de gordura. Como um legítimo álbum conceitual, todas as faixas têm papel crucial e relevante para o resultado da obra final. Tanto sua estrutura narrativa quanto a forma com que as faixas são agrupadas não são por acaso.
Com produções assinadas por Dinho, Mahal Pita, Moi Guimarães, Netto Galdino, Pedrowl, RDD e Chibatinha (ÀTTØØXXÁ), Dolores Dala Guardião do Alívio nos conduz à jornada emocional de Rico, através de uma fábula envolvida por versos poéticos e rimas instigantes, de alguém que incessantemente procura a calmaria em um mundo hostil. Enquanto Orgunga, álbum anterior do rapper, é “o orgulho que vem depois da vergonha”, aqui ele nos revela o alívio que vem depois da dor.
A música de abertura é a intro DDGA, faixa em spoken word que apresenta um eu-lírico absorto e contemplativo, olhando para trás depois de um longo caminho percorrido e refletindo sobre sua trajetória, essa que acompanharemos nas 10 faixas que virão a seguir. Entre todo o texto que é recitado, uma frase ecoa em destaque: “não falaria de alívio se não tivesse doído tanto”. Aqui, Rico evoca as duas máximas que irão ditar o curso que sua narrativa percorrerá: dor e alívio. Essa dualidade é exposta e será posta em constante conflito até que ela ache seu equilíbrio para, desse modo, abrir passagem para a cura. Afinal de contas, depois de tudo o que ele passou, simplesmente não há como continuar o mesmo.
Em contraponto à faixa anterior, voltamos à estaca zero e somos levados à Expresso Sudamericah. Dessa vez, ao invés de ouvirmos um discurso auspicioso e otimista, nos deparamos com o manifesto de um homem confuso, angustiado, largado sozinho na estação, procurando sentido em sua caminhada. Acompanhamos o seu raciocínio junto às batidas compassadas, de quem questiona sua posição no mundo e as responsabilidades que essa posição lhe infere. Como uma carta para o seu público, vinda direto de um período em que o próprio Rico, depois de sofrer constantes ataques por unicamente reivindicar um direito trabalhista, perguntava-se qual era o seu papel como músico em uma indústria tão opressiva e sufocante.
Mas ali ele encontra uma resposta. Ou, senão uma resposta, uma faísca de esperança. Dalasam usa a sua experiência individual como homem, negro, gay e latino para comentar todo o processo de henrança colonial da América do Sul, posicionando-se no centro desse cenário. Não é à toa que, durante o refrão, ele se dirija diretamente ao ouvinte: “Alô parceiro, passageiro”. Afinal, ele não caminha sozinho. E, no fim das contas, não adianta de nada produzir um hit de milhões se isso significar se render à ordem vigente e tornar-se ainda mais refém desses poderes. Ele, enfim, conclui que não importa o quanto tentem calá-lo, ele mesmo abrirá o seu caminho para o topo, traçando seu propósito: “Tô desenhando um coração onde todo dia apagam um monte”.
Esse artifício de utilizar vivências individuais para comentar um fenômeno social coletivo rege toda a estrutura de Dolores Dala Guardião do Alívio. Em Não é Comigo, é introduzido, através de um áudio de WhatsApp, um dos arcos centrais a serem abordados: um relacionamento interracial, homoafetivo, e as implicações disso para ele como homem negro. Rico então atravessa um importante tópico: a solidão do gay negro, constantemente hiperssexualizado e idealizado em fantasias e fetiches sexuais, porém nunca considerado digno de amor e afeto genuíno. O rapper decide enfrentar diretamente esse imagético e coloca o seu parceiro – evidentemente branco – contra a parede ao questionar o motivo dele não assumi-lo para seus familiares e amigos.
Tal temática continua se estendendo na faixa que sucede, Última Vez. Musicalmente, essa é a que mais se diferencia do resto do álbum: um afrobeat que abusa de 808’s e arranjos eletrônicos, predominantes no gênero do trap – o que se encaixa perfeitamente com a estética densa e soturna que a música quer transmitir –. No entanto, ela também opta por batidas mais orgânicas, somadas a suaves dedilhados de cavaco em segundo plano, fazendo com que sua sonoridade, ainda que destoante, continue soando familiar com o resto da tracklist. Além disso, com sua voz sustentada por um autotune modesto, porém marcante, e um flow melódico à la Beli Remour, Rico explora sua extensão vocal como nunca antes, expressando sentimentos que vão da agressividade à melancolia.
Por meio de rimas ríspidas, cruas e diretas, Rico se localiza e deixa claro: ele não será cativo de ninguém. Frases como “quer meter, mas não quer manter” o colocam em uma posição ativa e reforçam a sua ofensiva, de alguém que sofreu calado por tempo demais. De tônica semelhante, a faixa Mudou Como?, um afropop enérgico que cativa logo na primeira ouvida, relata o momento em que essa relação adquire um caráter abusivo, fatalmente repercutindo as dinâmicas de uma hierarquia colonial. Nos deparamos com um eu-lírico complexo e impotente, em conflito com a contradição de ainda desejar permanecer em uma condição que o faz tão mal.
Com o intuito de realizar um mergulho mais íntimo sobre esse romance e seus efeitos tanto internos quanto externos, o primeiro single de Dolores Dala Guardião do Alívio e seu maior hit, Braille, é conduzido por um sample notável de Chanel, do Frank Ocean, acompanhado por um singelo pandeiro, culminando, no refrão, em um dos clímax mais memoráveis que o rapper já nos proporcionou. Seu talento como compositor se manifesta em versos intensos e frases icônicas que tratam da forma mais franca possível os infortúnios vivenciados com seu parceiro.
E então, finalmente, depois de tantos tormentos e anseios, Supstah é uma quebra que vem como um balde de água fria, um momento de respiro diante de tantas perturbações. Supstah é a utopia de Rico Dalasam, quando, nem que seja por um breve instante, ele se entrega aos seus sonhos e se permite descolar de sua existência material, idealizando um mundo diferente para si e para os seus.
Talvez, exatamente por ser um momento mais brando e menos urgente, essa também seja uma das faixas de menor destaque de Dolores Dala Guardião do Alívio. Porém, independente do seu impacto dentro do panorama geral, esse ainda é um dos takes mais bonitos feitos no disco. Visto isso, faz sentido que, na faixa seguinte, o interlúdio Circular 3, protagonizado pela mãe de Rico, o vejamos comentando, através da metáfora de uma espera em um ponto de ônibus, sobre a cultura imediatista de uma geração superexposta, sedenta por controle, que recebe estímulos de todos os cantos e não consegue mais enxergar valor nas pequenas coisas.
Voltando à realidade, agora em busca de tornar essa utopia tangível, Vividir chega como uma revisita nostálgica a um local e tempo distantes. Dalasam inicia citando elementos importantes de um período longínquo de sua vida: “Um pedaço de colo/Um gole de café/Uma foto de um ano/Que eu não lembro qual é”, até que por fim ele tenha que confrontar o fato inevitável de que as coisas mudaram e, não importa o quanto ele queira, elas nunca voltarão a ser o que eram antes: “Onde era minha casa não é mais/Onde era minha escola não é mais/Onde era a minha vida não é mais/Cadê?”. Mas, afinal, já que não temos controle sobre o que acontece ao nosso redor, o que fazer a respeito?
É isso que Rico tenta responder no interlúdio Outros Finais, uma ponte para o final da grande odisseia de Dolores Dala Guardião do Alívio. O texto, declamado por Camilla Pellegrini, que transcende o concreto e sugere uma conexão etérea, divina e espiritual com sua ancestralidade, é introduzido ressoando a frase “Ninguém está mais no mesmo lugar”, como se contestasse diretamente as indagações feitas previamente em Vividir. Dalasam então, através de sua fé, encontra as respostas de que precisa, pavimentando o caminho para seu encontro consigo mesmo em Estrangeiro.
Essa música, mais do que uma reconciliação e um término pacífico – ainda que não menos crítico – para aquele romance tão atribulado, representa o Rico respeitando seu próprio tempo e, enfim, se chocando com a possibilidade da cura. Representa sua tomada de consciência de que aquele não é o seu lugar, e a retomada de sua busca por um espaço que é de seu direito. Estrangeiro não marca o fim de sua jornada, e sim o fechamento de um ciclo para a abertura de um novo. Libertando-se das correntes dessa relação tóxica, ele sai desse episódio amadurecido e em paz com sua decisão. Em virtude disso, não é por acaso que a frase que marque o desfecho dessa história seja: “Fui, porque acabou a fé/Não, porque acabou o amor”.
Uma coisa é certa: Dolores Dala Guardião do Alívio é rap – Rhythm and Poetry – em sua essência. Transbordando poesia, talvez essa faceta de Dalaboy nunca tenha estado tão escancarada antes, no melhor dos sentidos. Entretanto, o álbum não se restringe a isso. Construindo uma colcha de retalhos, ele bebe de diversos gêneros afrolatinos distintos – do dance hall ao samba e pagode –, pincelando doce e gentilmente sua obra por temas pesados como colonialismo, homossexualidade, afetos e negritude, elevando-a a uma experiência lúdica e acessível, sem diminuir o impacto, relevância e seriedade dessas questões.
E, ao fazer isso, ele passa a destoar ainda mais dos seus trabalhos anteriores e das tendências musicais do pop atual. Mas, apesar disso, continua soando aconchegante e convidativo para quem acompanha o artista desde Modo Diverso. É um retrato tão pessoal e tão singular, mas que, ao mesmo tempo, de alguma forma, consegue soar completamente abrangente. Tal qual o próprio Rico pontua, alguns dos contos e versos apresentados poderiam muito bem serem cantados pela Marília Mendonça, porque amor, desilusão e rompimento são conceitos universais e identificáveis para qualquer um. No entanto, calhou por serem cantados por ele, o que é potente e político por si só.
Por fim, bem como a sua capa sugere, esse álbum é um abraço acolhedor. É a proposta de um alívio para um período tão doloroso quanto o que estamos passando ao, como ele mesmo define, “desenhar um coração dentro de um corpo preto sul-americano”. Coração esse que, não importa o quanto seja golpeado, continuará pulsando e resistindo obstinadamente. Assim sendo, me parece que a rosa é o signo perfeito para a sua fábula: algo tão bonito, ao mesmo tempo que potencialmente perigoso – Rico Dalasam consegue encontrar beleza em uma realidade espinhosa, e não poderia haver posição mais revolucionária do que essa.