Vitor Evangelista
‘Que hino é esse que você está assobiando?’ pergunta um carrancudo Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) ao carismático Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce). O futuro Papa Francisco sorri ao responder, ‘é Dancing Queen, do Abba’. É nesse marasmo lírico que Fernando Meirelles decide versar sobre religião, legado e sobre desavenças. O embate ideológico entre dois homens, idosos, membros da mesma Guilda. Dois Papas pode ser esmiuçado e desmontado na representação de uma longa prosa, amena e chapa branca. Seria ilógico procurar na Netflix, essa grande corporação que tenta agradar a todos, um estudo potente e doloroso sobre os crimes da Igreja Católica ao longo do tempo.
Como figura de entretenimento e emoção de escape, Dois Papas só acumula êxitos, afinal, quem não gostaria de saber o cotidiano das figuras sacras que guiam milhões de fiéis? Piadas à parte, o filme é latente ao se lambuzar em culpa. Os planos escolhidos para Meirelles dar vida aos homens de Deus reforçam um sentimento de vergonha, uma postura acuada quanto às tramas estudadas nas mais de duas horas de duração. E, mais importante que a escolha dos temas do filme, o mesmo parece tímido e acanhado quanto à maneira que opta por dedilha-los, sempre jogando no seguro, no plano comum.
O filme toma parte, a priori, no momento de renúncia de Bento XVI da figura máxima da fé católica, e sua eventual sucessão por Francisco. A renúncia de um Papa, é necessário dizer, marca um ineditismo sem tamanho nessa esfera religiosa. O precedente vem de mais de seiscentos anos atrás, e a decisão de Bento treme as bases da Igreja que, àquela época, passava por turbulências envolvendo documentos vazados, os Vatileaks. Esses eventos resultaram na prisão do assistente de Bento XVI, acusado de ser quem tornou público os papéis que continham crimes gravíssimos, casos relacionados a pedofilia, e tudo sob o nariz do pontífice. O caos generalizado que engoliu a figura do alemão, não restando qualquer outra jogada, senão adotar o sufixo emérito, o papa aposentado, por assim dizer.
Quando Jorge Bergoglio, o futuro Francisco, viaja ao Vaticano para pedir autorização de aposentadoria à Bento XVI, então o filme começa. Veja bem, nas leis do catolicismo, apenas cardeais com mais de 75 anos têm autorização para se afastarem do cargo, tudo assinado pelo Papa atual, é claro. Mas Jorge se vê insatisfeito com o papel que desempenha na Argentina, sua terra natal, e decide adiantar a decisão; Bento nega, veementemente, o pedido do colega. O filme se diverte aos ilustrar o personagem de Hopkins indo na contramão da figura de Pryce. O roteiro de Anthony McCarten (já falo do péssimo currículo) é singelo ao inserir uma série de piadas, momentos de quebra de tensão e, o mais impactante, falas que não parecem ter sido escritas antes. Tudo soa natural, ou melhor, desimportante, e da maneira que deve ser.
Fernando Meirelles (Cidade de Deus) deu esse exato direcionamento a seus astros. Entregar aquelas linhas de diálogo não como adaptações teatrais (mesmo o filme sendo, bem, adaptado de uma peça), e sim apenas dizê-las. O grande momento catarse, quando Bento coloca aos ventos sua grande decisão, é servido como uma linha qualquer. Ambos Papas estão sentados num luxuoso banco na Capela Sistina (uma réplica) e Hopkins quase arrota ‘eu vou renunciar e esse mármore está muito frio, vamos levantar’. McCarten modifica os usuais chavões do gênero para momentos íntimos e honestos, penteando seus temas por entre seus atores estonteantes, suas vestes sacras, cenários primorosos e a censura de 14 anos que acompanha a exibição do filme.
Encontrar em Dois Papas um roteiro que, dentro de suas imposições, consiga arredondar a trama, é um feito curioso. Levando em consideração as contribuições de Anthony McCarten para a Sétima Arte, poderia se esperar o pior. Além da crônica sobre os papas, ele escreveu o abominável A Teoria de Tudo (2014), o ‘tão-ruim-que-dói’ O Destino de uma Nação (2017) e o crime hediondo em forma de película digital Bohemian Rhapsody (2018). Pelo menos sua última investida foi com temas religiosos, tendo em vista o passado recente, apenas com um exorcismo McCarten se livrará desses fantasmas.
Mesmo que o papel de antagonistas morais dos Papas soe preguiçoso a um filme com tamanho calibre, o charme das performances desmorona as personas reais pintadas ali. Nota para dois fatores interessantes à equação: primeiro, a agência católica ACI Prensa foi sucinta ‘o filme não representa Bento e Francisco’; e, segundo, Meirelles suavizou a figura de Bento, alegando que seu retrato é mais brando que a realidade, tudo devido ao magnetismo e a presença de cena do monstro Anthony Hopkins. O ator compartilha a velha idade com seu Joseph Ratzinger, o nome de batismo do alemão que veio a renunciar o Papado em 2013. O ator busca ir além do cinismo e da carranca de seu personagem, mesmo que seu norte sempre se volte à iminente negação de qualquer progresso para as doutrinas da Igreja. Ora ou outra o bom povo do Vaticano adora se referir a ele como nazista, esboçando assim um descontentamento com a maneira que ele decidia guiar a Fé.
No outro lado da moeda, Jonathan Pryce reluz simpatia e floresce benevolência, sempre numa primeira camada. O filme faz questão de se posicionar junto à Francisco, seus traumas, pecados e arrependimentos, mas nunca realmente descascando o homem por baixo da batina. Uma porção de flashbacks que revisitam a Ditadura na Argentina são base para as decisões que Jorge Bergoglio tomou, mas o filme parece letrado demais para chocar ou mesmo emocionar com os relatos temerosos do século passado. Fernando Meirelles colocou na balança o impacto dos regimes autoritários na América Latina e pavimentou as cenas da juventude do futuro Papa com certo grau de cautela, novamente obedecendo a doutrina maior da grande rede corporativa que bancou os cheques de Dois Papas.
Até as paixões de cada Papa ressoam batidas. O clássico Bento XVI é apaixonado por piano, mas não conhece as músicas dos Beatles e ama Fanta Laranja. Francisco é fanático por futebol, torce pro San Lorenzo, além de dançar tango por diversão. Em momento algum Dois Papas se preocupa em cantar notas fora de sua acústica. Mesmo a arrojada direção de Meirelles, aliada à montagem de Fernando Stutz, se complementa como escolha puramente estética. Ou que, pior ainda, não concretiza suas funções pré-definidas na sala de roteiro. A sobreposição de imagens, cortes rápidos e tortos, excesso de closes, todas delimitações que, como filme, parecem se envergonhar da bússola que dá as diretrizes. Passando desapercebidas, toda a orquestra cinematográfica do longa se transmuta numa postura cabisbaixa, ciente de pisar na bola. A humanização das figuras quase divinas debatendo Deus e o mundo não passa do parágrafo seguinte, mesmo com a ironia do roteirista ter escrito diálogos que ultrapassaram doze páginas.
Nos momentos que o filme vira o volante para temas e assuntos delicados, a corda do ônibus é puxada e somos tirados dali. Numa rasteira sem medo ou cuidado, Dois Papas prefere deixar muda a sequência que Bento XVI confessa os crimes de pedofilia de seus cardeais. A trilha sobe, as palavras somem e um zumbido desconfortável toma conta da tela, ao passo que Francisco ouve em choque as barbáries da Igreja. Ele escuta, repreende e perdoa o Santo Papa, atitude essa que não será duplicada pelo público, na sarjeta da dramaturgia e da arte, especulando o óbvio que, mesmo nesse papel, foi covardemente silenciado.
Questões como o aborto e a comunidade LGBT são varridos pro canto da Capela Sistina em diálogos que buscam muito mais a quebra pelo humor do que a construção de drama e peso às palavras. Todas essas escolhas refletem na cinematografia de César Charlone, que filma receoso e encolhido as belíssimas construções do Vaticano. A óptica pendendo para Francisco é testemunha do retrato que a cidade ganha. Por essas e outras e por mais estranho que pareça, Dois Papas não é um filme ativamente religioso. Esse posto da película de 2019 que se preocupa em vangloriar o sagrado e o ouro de Deus acaba caindo no colo de O Irlandês e sua visão quase divina da Máfia.
Num cenário como o desse ano, com filmes que debatem a euforia da sociedade renegada (Parasita, Bacurau), outros que buscam estudar o legado e o futuro incerto (Dor e Glória, Era Uma Vez em… Hollywood) e mais alguns que se dedicam ao espelho do amor e da perda (Retrato de uma Jovem em Chamas, Jojo Rabbit), Dois Papas se define na base da evolução e do autocuidado.
Uma produção rica em temas e execução mas infelizmente amordaçada com a corrente do ‘agradável’ à grande massa. Fernando Meirelles certifica seu talento para narrar histórias sobre o caráter do homem, ainda que para isso ele invista ora numa favela carioca, ora em dois idosos católicos. O cinema brasileiro respira, mesmo no continente dos ianques.