Enzo Caramori
Em todas mitologias, existem rotas desconhecidas que até mesmo os mais vividos viajantes e argonautas nunca se atreveram a traçar em seus mapas envelhecidos, especulando apenas o que seriam esses tão grandiosos perigos. Pode-se logo pensar que o medo esteja nas ondas de um mar revoltoso, mas a verdadeira violência é a de se prender em órbitas obsessivas do mais temido feitiço: o desejo. Vários são os poetas – talvez os maiores excursionistas desse percurso – que, esquecendo-se do poder de reconfiguração da paixão, perdem-se, tentando capturá-la com objetividade, em suas profundezas.
A artista estadunidense Caroline Polachek é uma das viajantes que também não encontrou o seu destino, até mesmo porque seu maior objetivo está no próprio ato da busca. Em seu novo e triunfal álbum, Desire, I Want To Turn Into You, Polachek constitui uma cartografia do desejo na forma da música pop. Nela, diferentemente de outras narrativas em que o ser apaixonado quer tomar controle e dar nome ao que sente, a cantora prefere ser transportada pelo êxtase do sentimento. As excursões feitas nas doze faixas do esperado sucessor de Pang são ruminações, balbucios e expressões fundadas pela letargia, que mais criam imagens do que a paixão pode ser do que realmente um dizer concreto.
A fragmentação do discurso amoroso em múltiplas peças mostra o quebra-cabeça teórico montado pela artista a partir de modelos sem uma forma fixa. As harmonias e os elementos melódicos repetem-se, camuflados, entre as músicas; os versos – minimalistas porém nada literais – não possuem uma ligação nem uma linearidade uns com os outros. Como se dispostas aleatoriamente, suas composições mostram a vontade de propor uma visualidade pela simplicidade poética de suas letras. “Uma terna criatura / Uma febre / Encantadora, fluorescente”, exerce a tentativa sinestésica de capturar o desejo pelo reino das sensações e do inconsciente, no qual Polachek navega.
Nessa fixação a um vasto universo de imagens, a criadora de Pang traduziu a pintura surrealista Aniversário, de Dorothea Tanning, no sonho brutal de Door, que inaugurou sua carreira solo depois do grupo Chairlift. Já para Desire, o olhar arqueológico da autora procura, para dentro e fora de si, os mais variados símbolos: pinturas rupestres de bisontes, cornucópias romanas, quimeras, sombras platônicas e as lendas mitológicas de Minotauro e Teseu. E diferentemente de seu antecessor, as habitações agora são demasiadamente quentes para saias xadrez e espartilhos.
Em Smoke, é a efervescência gutural de um vulcão jorrando lava, representado por batidas e graves tectônicos — feitos do produtor executivo do álbum, Danny L Harle — que traduzem o descontrole e a violência de um corpo que busca o outro. O som de Harle, que situa-se em um bubblegum pop aéreo misto de um techno cartunesco, aqui ganha uma substância extremamente terrena e sóbria. Na mesma paleta de tons quentes, a faixa Sunset reside sob o sol de Barcelona, na qual o produtor Sega Bodega abandona o deconstructed club das baladas underground europeias para compor acordes fervilhantes em um violão flamenco. A canção situa a possibilidade de se estar perto, se não já envolvido, pela intimidade e pelo suor da luxúria.
Na clara dubiedade do título, da vontade de tanto debruçar-se quanto tornar-se o desejo, é onde a tese de Desire reside acesa. Polachek propõe charadas e mitologias entre o abismo de estar, ao mesmo tempo, extremamente conectada e distante com o outro. Essa falsa proximidade, colocada principalmente pelo isolamento social da quarentena, serve como uma fantasia escapista para a compositora, na qual é possível encontrar uma segurança na impermanência que, no fundo, busca um lugar para pouso.
Bunny is a Rider é a recitação dessa energia, na qual as instrumentações surpreendem por sua complexidade, tomada por um ritmo com uma pitada tropical e por seu potencial pegajoso na sonoridade pop. Bunny foi o primeiro single do projeto, que assusta em suas batidas assíncronas e robóticas e em seus elementos inesperados, como o grunhido remixado da filha recém-nascida de Danny. Em um groove despretensioso, a faixa é quase uma reinvenção da deliciosamente confusa After Party, de Don Toliver, só que por uma estrela pop atmosférica e imaginária. No single, Polachek é atrevida e viciosamente indisponível e – por que não? – offline.
Polachek, ainda longe de uma materialidade e sendo mais um conceito do que, realmente, uma presença, concebe, no título da música Pretty In Possible, um enigma (seria ‘‘no possível’’ ou ‘‘impossível’’?). A faixa guarda a lírica cerebral característica da vocalista, diluída no fluxo de consciência de sua composição, transeunte na progressão de tiques mecânicos que ganham uma leveza solar no instrumental de Harle. Seja pela incógnita ou pela ameaça de devorar, a canção traça a direção do projeto, enquanto parece, sonoramente, com algo que encaixaria-se no minucioso e rutilante Details, de Frou Frou, com um misto da aura sugestiva de Candy Perfume Girl.
É como se fosse capturada a sensação de vertigem que precede um viajante diante de águas desconhecidas, ou de um cantor frente à aproximação de seu refrão que, em Pretty In Possible, nunca chega. Nem o Oráculo possui pistas para seu fim, levando a percursos inesperados entre arranjos acústicos e eletrônicos que dão espaço à emulação de texturas e imagens sutis de erotismo: “Com o seu batom na minha coxa / Beba as lágrimas até elas secarem”.
Mais extrovertido que Pang, Desire possui seus momentos de introspecção que são, em meio do êxtase na maioria das canções, como a recaída de uma euforia sensual que retrai-se para dentro da casca de sua própria estranheza. Crude Drawing of An Angel é um episódio onírico, sexual e esquisito – do mesmo nervo de Die 4 You, de Perfume Genius e de Watching You Without Me, da obra prima de Kate Bush – que aposta em um storytelling com pistas de voyeurismo. Esse olhar mais sombrio mira a finitude das coisas em Hopedrunk Everasking. Na mesma sensação de quietude e magia, Polachek observa tudo com extrema efemeridade, enquanto reflete que os séculos, sentimentos, rumores e noites são cíclicos mas, para iniciarem-se novamente, precisam em algum momento encontrar o seu fim.
No entanto, assim como qualquer humana — mesmo que, muitas vezes, tal condição é destituída para ser pensada como uma ninfa, uma fada ou uma sereia —, Caroline Polachek sonha com a imortalidade. I Believe tem o tom épico e grandioso de um hit do pop italiano dos anos 1980, com seus sintetizadores radiantes, mudanças inesperadas de acordes e a gigantesca presença da voz da estadunidense, que traz a lembrança vocal das canções de Celine Dion. Tudo parece ter sido retirado de um baile disco do próprio universo do álbum, desde as samples orquestrais retiradas de bancos sonoros da internet até o seu próprio arquétipo de diva.
A diva é uma construção essencialmente feminina, ligada a uma maturidade e a um senso de paixão que pode levar à afetividade extrema ou à destruição. No espaço imaginativo dessa figura mística e imaterial é onde se processa o luto da morte de Sophie Xeon, produtora de uma música eletrônica imortal e futurista, além de extremamente pessoal, poética e plástica. O potencial dramático, somado a energia luminosa das pistas de dança, ganha o potencial de elegia nos vocais crescentes de I Believe, que parecem querer alcançar Xeon, aonde quer que ela esteja, e chegar ao infinito: um lugar transformativo de ideias, corpos e existências que um dia a pioneira já conquistou.
Em Blood and Butter, a paixão é um contágio pelo qual Polachek está sufocada, ecoando enunciados em torno do desterramento de quem ama. O instrumental colide a organicidade de gaitas de fole e melodias folclóricas – parecendo terem sido tiradas do The Sensual World, o libidinoso e folclórico álbum de Kate Bush — a uma base eletrônica delicada que poderia ter saído do techno pop da Madonna em Ray of Light. Tudo é extremamente desejante e, mesmo que ainda abstrato, a canção é onde se resplandece seu discurso mais declamatório e confessional. Transtornada pela possibilidade de entregar-se ao outro e reconfigurar-se inteiramente perante o desejo, Polachek puxa tudo para perto de si, para que se sinta o seu perfume e sua fome de quem vive de nada além da libido, num ímpeto mais do que corpóreo e até creepy de imprimir-se na pele do outro, lacerando-a como uma tatuagem.
Se em sua coletânea irreverente dos mais variados elementos míticos e históricos, a mente criadora poderia ser classificada como enciclopédica, talvez a artista prefira ainda a Wikipedia. Conectar-se ao antigo e ao arcaico é um dos meios que a faz encontrar materiais brutos e substratos para a sua própria escultura do desejo, mas ainda assim prefere não perder sua contemporaneidade. Em sua poesia, toma conta o ritmo ininterrupto do monólogo de Molly Bloom, o final da leitura moderna da Odisseia, por James Joyce, só que talvez já um pouco afetado por fábulas cibernéticas. Esse anacronismo dorsal que atravessa Desire tece seu magnum opus: Billions.
Sexting como se tivesse, metricamente, compondo sonetos e guardando amantes dentro de sua boca, como pérolas. A viajante mergulha em um hedonismo dionisíaco em Billions, o testemunho total de Desire. A linha do baixo e os timbres são hipnóticos e tântricos, algo entre a sensualidade rítmica de Venus as a Boy, as produções de Timbaland nos anos 1990 e a ressonância de gongos em rituais de culto à sexualidade e à natureza. Existe, talvez como em nenhuma outra faixa do álbum, uma universalidade em suas imagens, em que todas as possíveis argumentações do desejo são diluídas nos vocais espiralares da cantora, que se apresenta como uma iniciadora, quase xamânica, às liturgias do corpo. Enigmática, sexual e complexa, Polachek coloca sua voz em um massivo exercício de distorções que atingem seu ápice cerimonial no fim da canção, em um coro de crianças que, dando fim a sua viagem mas não ao seu querer, entoam como um mantra: “nunca me senti tão perto de você”.
Ser liderada pelo caos da emoção é algo que dirige Polachek para o paradoxo de ser extremamente corpórea ou intensamente etérea, escrevendo versos sem pretensão, como se a cabeça estivesse nas nuvens. Essa variação temática de um ímpeto de despossessão do corpo e da vontade carnal de habitar a si mesmo é a metáfora máxima – mesmo que não seja dita pelas passagens de seu álbum – da perda da inocência: algo tão físico mas, ao mesmo tempo, inteiramente conceitual. O desejo é, antes, lava. Depois pó, depois nada.
A ilustração mais verdadeira das vias de Desire, I Want To Turn Into You, entre os diversos símbolos acionados para esse universo de luxúria, são as subterrâneas e labirínticas linhas de metrô sem um sentido fixo; para as quais o olhar distante da cantora, na capa do projeto, funciona como um aviso. Adentrar-se ao movimento do desejo é entender que, durante a rota, a transmutação de si é algo inevitável, mas são justamente o que essas mudanças podem instigar – erupções, incêndios e cicatrizes – que a fazem de refém a esses caminhos. Todavia, o desejo é um perigo cauteloso, que anuncia e pede permissão para atingir as fragilidades humanas. A essas perguntas, Caroline Polachek sempre responde, em bom e alto tom, um deleitoso e vertiginoso ‘‘sim”.