Laís David
Nos anos 2000, a Disney foi responsável, quase que unicamente, pela revelação de artistas adolescentes – em 2008, foi a vez de Demi Lovato. Com vocais impressionantes e personalidade contagiante, a texana se tornou garota propaganda de debates sobre saúde mental, vícios e transtornos alimentares, até ter sua própria narrativa roubada com a notícia de sua overdose em julho de 2018. Esse ano, ela lança seu sétimo álbum de estúdio, Dancing With The Devil… The Art of Starting Over, na tentativa de retomar controle de sua própria história.
Diferente da áurea totalmente soul e R&B de seu antecessor Tell Me You Love Me, Starting Over retorna à sonoridade do início de carreira de Lovato. Passeando por pop rock, country e até folk, o disco traduz de forma brilhante as conturbadas narrativas da cantora por meio de diferentes gêneros dentro da obra. A produção é de crédito de seu grande amigo, Oak, e seu colaborador de longa data, Mitch Allan. Com 19 faixas e 57 minutos de duração, é o álbum mais longo de sua carreira.
A obra surgiu de um conceito de renascimento. Após seis anos de sobriedade, Lovato sofreu com uma recaída e começou a usar drogas mais pesadas, como crack, metanfetamina e heroína. Em julho de 2018, o organismo da cantora não suportou o uso de oxicodona e fentanil, causando sua overdose seguida de três derrames, cegueira e um ataque cardíaco. Por questão de minutos, ela conseguiu sobreviver – a partir desse momento, ela decidiu seguir um único caminho: utilizar a música como libertação de seus próprios demônios.
DWTDTAOSO foi dividida em dois atos: o primeiro, composto por três músicas, representa sua recaída, overdose e estadia no hospital. Abrindo o disco, Anyone é uma súplica crua por socorro. Produzida poucos dias antes da overdose, o piano solitário parecia mais um prelúdio das adversidades que ela enfrentaria dias depois: “Contei segredos até minha voz ficar rouca/Cansei de conversas vazias/Porque ninguém me ouve mais”. Foi sua composição simplista que trouxe Demi de volta aos palcos pela primeira vez desde o incidente ao apresentar Anyone no Grammy de 2020.
A honestidade da artista continua na faixa-título Dancing With The Devil, que detalha, como uma linha do tempo, sua recaída nas drogas. Sob uma produção soul e vocais eletrizantes, é quase impossível não se emocionar. A gradação da composição é o que encanta: de ‘‘É apenas um vinho tinto/eu ficarei bem’’ para ‘’É apenas uma fileirinha branca/e logo essa fileirinha branca se torna um cachimbo de vidro’’, o ouvinte chega a se sentir próximo de Demi, a enxergando irrompendo seu próprio caminho de sobriedade.
O primeiro ato de Dancing With The Devil… The Art of Starting Over termina com a paralisante I.C.U. (Madison’s Lullabye). Acrônimo tanto de Intensive Care Unit (“Unidade de Terapia Intensiva”) quanto da frase em inglês ‘I See You’ (“eu vejo você”) , ela nasceu do momento em que Demi acordou depois da overdose, completamente cega e com danos cerebrais. O seu estado de saúde era tão crítico que ela não conseguia reconhecer a própria irmã caçula, a atriz Madison de La Garza. Num momento claramente traumático, surge uma das composições mais puras de sua carreira: “Eu era cega/mas agora eu vejo/eu vejo você”.
O caminho de cura se inicia com a segunda parte da obra, em The Art of Starting Over. A faixa é um soft pop refrescante e uma evolução sonora na discografia da artista. Para uma pessoa que teve seus piores momentos retratados na mídia como Lovato, é fascinante enxergar sua resiliência enquanto ela entoa: “Acho que estou dominando a arte e recomeçar/Novos começos podem ser solitários/Graças a Deus que eu me tenho”.
Não se engane, suas inseguranças ainda são lugares-comuns em suas composições: The Way You Don’t Look at Me manifesta o impacto da distorção de imagem em um relacionamento inconsistente: “Tenho medo de me despir/e você não me amar depois”. Sua alimentação sempre foi uma incógnita: sua antiga equipe a forçava a não consumir açúcar e a privava até de ter bolos de aniversário de verdade, assunto tratado de forma até espirituosa em Melon Cake: “Chega de bolos de melancia em aniversários/Chega de barricadas nas portas”. Ela toma controle de seus próprios problemas pela primeira vez.
A obra também não decepciona nas faixas mais dançantes. My Girlfriends Are My Boyfriend é uma versão bem mais pop de 7 rings: celebrando a união feminina e o fim de um noivado, ela rejeita o romantismo de uma vez por todas junto com o flow impressionante da caloura Saweetie. Também chama a atenção a colaboração muito esperada com Ariana Grande: o dueto sedutor Met Him Last Night combina duas vocalistas de ponta na composição solo de Grande.
No passado, Demi sempre compôs músicas que refletiam sua visão positiva no casamento e em relacionamentos sérios. Agora, é extraordinário vê-la rejeitando a heteronormatividade e abraçando o amor livre, como em The Kind of Lover I Am: “Posso não acreditar em monogamia/Mas no momento que me apaixono, acabou para mim”. Lonely People também prega anti-romantismo sob uma melodia que parece ter saído de um B-Side de pop rock dos anos 2010: “Romeu e Julieta estão mortos/Todo amor é um meio para o fim”.
Sua vida amorosa é exposta sem hesitação no disco. Seu noivado desastroso com Max Ehrich é trabalhado de forma quase cômica em 15 Minutes: “Você estava a procura de 15 minutos/e você conseguiu seus 15 minutos”. Já Carefully é uma versão mais madura de Lightweight, e o mid-tempo encanta pela delicadeza e simplicidade. O papel decepcionante do disco fica com Easy, parceria com a novata Noah Cyrus. É uma composição monótona, e nem os vocais potentes e arranjos angelicais conseguem salvar a canção.
Não existe mais ninguém que possa definir mudança na vida de Demi a não ser ela mesma. Dancing With The Devil… The Art of Starting Over é a representação clara de sua evolução emocional, espiritual e profissional. Ela deixa claro que vícios e problemas sempre existirão: a cura não é uma linha reta. Existem dias ruins, anos ruins e recaídas inesperadas. O mundo é maior que a dicotomia entre o certo e o errado, a honestidade e a desonra, o vício e a sobriedade. Nem todos conseguem transformar essa malha de sentimentos volúveis em arte, e é isso que faz Demi Lovato tão especial.