Eduardo Rota Hilário
Se um segmento popular da Música brasileira é rotulado em consenso, hoje em dia, como sofrência, isso é sinal de que o público mais novo desconhece totalmente os tangos outrora gravados – e dramatizados – por Dalva de Oliveira. Brincadeiras à parte, em 1961, mesmo ano em que lançaria seu Jubileu de Prata, a grande estrela do rádio investigava magistralmente alguns dramas humanos, principalmente os passionais, reunindo-os de forma bastante coesa em outro daqueles seus álbuns mais memoráveis de toda a carreira: o quase teatral Tangos. Esta abertura, por sinal, pode até parecer exagerada, mas uma única reprodução do mencionado LP consegue comprovar nítida e facilmente o contrário.
Sendo mais um dos lançamentos da gravadora Odeon, Tangos é, antes de tudo, uma reedição do disco Os Tangos Mais Famosos na Voz de Dalva de Oliveira, de 1957. Ultrapassando, no entanto, as oito faixas gravadas anteriormente com o músico uruguaio Francisco Canaro, Dalva agora incluía em seu repertório mais quatro canções estrangeiras que, adaptadas para o Português, se transformavam, mesmo que minimamente, em obras com perceptíveis traços brasileiros. Na companhia da orquestra de Oswaldo Borba – e, em um caso específico, do próprio Canaro, segundo consta a contracapa do vinil -, nasciam, dessa forma, O Dia Que Me Queiras, La Copa Del Olvido, Cristal (Christal) e Donde Estas Corazon, que em nada destoavam do material mais antigo e reaproveitado.
Foi, inclusive, com a mesma sorte ou sensibilidade do Jubileu de 1961 que Tangos atingiu seus acertos desde o princípio, dando boa sustentação para uma jornada calorosa e intensa. Reservando à idealizada O Dia Que Me Queiras (Gardel/Le Pera/vers.: Haroldo Barbosa) o posto de faixa de abertura, a Rainha da Voz tornava extremamente grandioso aquele primeiro passo poético. “A noite que me queiras/Do azul do firmamento/Estrelas radiosas/Virão nos ver passar”, prometia a letra apaixonada. Não bastasse a excelência da composição, Dalva ainda alcançava, nesse primeiro contato, emoções e nuances que são, talvez, incomparáveis em toda a linha do tempo do mercado fonográfico nacional.
Mas as mágoas de amor eram inevitáveis, e La Copa Del Olvido (E. Delfino/Vacarezza/vers.: Tito Climent) chega afogando as tristezas em muito vinho, tentando, também, evitar um assassinato movido a ciúme doentio, assim como outros tipos de vingança extrema. Igualmente dentro de uma linha trágica, Sus Ojos Se Cerraron (Gardel/Le Pera/vers.: Ghiaroni) acompanha, por sua vez, o drama das temidas últimas despedidas, colocando em ênfase o sofrimento de quem, não sem inconformismo, diz adeus a uma grande paixão: “Por que lutamos/Se a morte foi mais forte?/Por que ainda vivo/Se tu eras minha vida?”. É até curioso pensar que, bem antes da existência do Sertanejo Universitário, uma cantora brasileira já amava e sofria na mesma intensidade, compartilhando, através de suas músicas, os sentimentos mais profundos e universais.
Em continuidade, Yira… Yira (E. S. Discepolo/vers.: Ghiaroni) assume um tom bastante pessimista – ou seria realista? – em relação às indiferenças do mundo, concluindo que não se pode esperar o mínimo auxílio nesta trajetória inflexível e brutal que é a vida. Já Confesion (E. S. Discepolo/L. C. Amadori/vers.: Lourival Faissal) expõe uma das mais interessantes narrativas destes Tangos, jogando luz sobre um indivíduo que, por amor incondicional e questionável espírito heroico, finge ser indiferente e resolve se afastar da pessoa amada. Para finalizar, então, o Lado A do vinil, Tristeza Marina (Horácio Sanguinetti/Roberto Flores/José Dames/vers.: Haroldo Barbosa) resgata as melancolias do mar, dando forças a um tema não muito raro no repertório da Estrela Dalva.
Virando o disco, Cristal (Christal) [Marianito Mores/J. M. Contursi/vers.: Haroldo Barbosa] fisga os corações mais dramáticos com seus versos exagerados e sonoridade marcante. “Tenho o coração feito em pedaços/Trago esfarrapada a alma inteira”, evidenciam as hipérboles iniciais. E é mais ou menos do mesmo tom a seguinte Donde Estas Corazon (L. Martinez Serrano/A. P. Berto/vers.: Ubirajara Silva), possivelmente um dos exemplos mais nítidos da “sofrência” sem medidas de Dalva. Mais uma vez, o eu-lírico encontra-se, aqui, diante da morte, temática que permeia o universo ora dançante, ora enlutado – mas sempre melancólico – do tango.
Ao chegar, contudo, à nona canção do álbum, a Rainha do Rádio atinge graus de beleza vocal e interpretação quase insuperáveis. É em Lencinho Querido (J. D. Felisberto/C. G. Peñaloza/vers.: Maugeri Neto), portanto, que Tangos ergue um de seus incontestáveis auges, dando vida a uma cinematográfica história de traições e beijos perpetuados em um lenço branco. Aliás, justamente por causa dessa versão arrebatadora, não é exagero afirmar que poucos brasileiros conseguiriam dar tanto vigor ao pañuelito de ilusão simbólico e estrangeiro. E se, para estar ao lado de uma lenda, é preciso ser uma figura igualmente lendária, Marisa Monte provou-se grandiosíssima ao gravar a mesma faixa em O Que Você Quer Saber de Verdade, de 2011.
Pouco antes do fim do LP, Fumando Espero (J. Viladomat/Felix Garso/vers.: Eugenio Paes) surge como uma das canções mais lembradas de todas as 12 faixas que compõem seu repertório, sobrevivendo com certo vigor até os dias de hoje. Também gravada pela estrela espanhola de Cinema Sara Montiel, na trilha sonora do filme El Último Cuplé, Fumando Espero brilhou recentemente, assim como sua antecessora, na voz artisticamente sagrada de Marisa Monte – que deu um toque especial à música em 2016, ao lançar o disco Coleção. “Enquanto eu fumo/Depressa a vida passa/E a sombra da fumaça/Me faz adormecer”, diz o trecho de uma das melhores adaptações feitas para nossa língua materna ao longo da História nacional.
Em contrapartida, Che Papusa Oi!… (G. H. Matos Rodríguez/E. Cadícamo/vers.: Haroldo Barbosa) e seus relatos irônicos tornam-se, no Spotify, o fragmento menos reproduzido de todo o fervoroso álbum. Tendo isso em mente, o gran finale acaba promovendo um contraste drástico ao assumir, atualmente, a posição de faixa mais ouvida do disco na mesma plataforma. A propósito, além de receber destaques numéricos, La Ultima Copa (Francisco Canaro/Juan A. Caruso/vers.: Tito Climent) exerce muito bem sua função de desfecho. E, descontextualizada, seria ainda capaz de fazer uma triste previsão para o futuro da Rainha da Voz: “Será esta minha festa derradeira/Para depois no esquecimento mergulhar”.
Esta é, enfim, mais uma visão panorâmica sobre parte da discografia da extraordinária Dalva de Oliveira. Não tão aprofundada, já que focaliza um disco ainda mais difícil de ser pesquisado, mas construída em modesta celebração aos 60 anos da obra em destaque. Seis décadas essas que, totalmente multifacetadas, foram tempo suficiente para o relançamento de Tangos por meio do selo Imperial, na década de 1970. E que poderiam trazer análises detalhadas sobre como os termos “negra”, “surdo” e “mudo”, dentre outros, eram utilizados sem muitos cuidados em 1961. Recorte temporal vasto, marcado pelo sucesso, esses 60 anos trouxeram, inclusive, um Tangos – Vol. 2, estreado com ousadia em 1963. Mas isso, meus caros, é assunto para um próximo texto.