Nilo Vieira
Já faz duas horas e ainda não achei um parágrafo inicial impactante o suficiente. Os dois maiores mitos sobre o fazer crítico surgem a cada nova tentativa: um texto sobre um disco tão canonizado precisa ser definitivo, ainda mais em data simbólica. E imparcial, não se esqueça.
Nestes 45 anos, o que ainda não foi escrito sobre Clube da Esquina, obra-prima de Milton Nascimento e Lô Borges? Poderia se analisar a rica gama sonora, cujas referências vão do bolero aos experimentos barrocos de Revolver e Pet Sounds, permeados pela típica ginga da música brasileira (em seu período mais efervescente naquela década). E as letras, cuja poesia vai de metáforas lisérgicas a descrições cortantes, também? Fácil, boa ideia.
Mas são 21 faixas. Não vai dar tempo, e capaz de sair um troço maçante. Ok, seleciono as melhores e traço pinceladas mais gerais. Fechou.
Esquece. Essa abordagem não fará justiça a um álbum que se destaca pelo conjunto. Há um forte senso de unidade ao longo dos quatro lados do LP, mas a narrativa mais se assemelha a uma coleção de insights cuidadosamente organizados. Até vinhetas como “Saídas e Bandeiras” não soam gratuitas: são equivalentes a um deja vu que o sujeito tem de sua infância, e logo desaparece em um piscar de olhos.
“Estrela” soa como um corte seco, um retorno ao estado onírico descrito no início de “San Vicente”, agora em um ângulo diferente. A versão instrumental de “Clube da Esquina No. 2” entra em cena e fecha o lado B, e é difícil afirmar se sua melodia está mais próxima de um sonho lúcido ou do raro processo de despertar (lentamente) bem. Se Elis Regina afirmou que Milton tinha “a voz de deus”, não há melhor exemplo que esta faixa, onde a ausência de palavras permite que seus falsetes se transformem em um instrumento etéreo.
Caracterizar Clube da Esquina como um grande sonho musicado é errôneo, porém. Acima de tudo, o grande triunfo do jovem Lô Borges foi captar as ideias de Lennon e McCartney e transformá-las em texturas para delírios de coisas reais. O amadurecimento de um rapaz em plena ditadura militar (na época, Borges tinha meros 18 anos) andou de lado com o fascínio quase infantil por novas sonoridades.
Por sinal, são as dualidades que tornam o LP tão único. O álbum é o encontro de um músico já consagrado no cenário nacional com um estreante nos estúdios, e esse choque geracional também recai para as composições. A crueza do violão de timbres rústicos divide espaço com timbres elétricos cristalinos, as letras são comentários políticos e relatos cotidianos – às vezes, ao mesmo tempo. Trata-se de um produto condizente com seu contexto geográfico, social e histórico e, ainda assim, transpassa todos eles.
Mas isso não basta para explicar o apelo que o disco conserva, mesmo após tanto tempo. E essa possível solução universal se mostra utópica a cada revisão: sempre há algum elemento a ser descoberto entre as camadas dispostas nas 21 faixas. Corro o risco de soar como um completo lesado, mas admito que demorei anos para reparar que os instrumentos acústicos exibem muito mais imponência que as linhas plugadas – compare a força das palhetadas no violão com a suavidade das notas elétricas em “Tudo Que Você Podia Ser”.
O que dizer então de, ao invés de acabar em tom upbeat com “Nada Será Como Antes”, os envolvidos tenham optado por um encerramento com a tensa “Ao Que Vai Nascer”? O “corro pra te encontrar” colocado após o “sei que nada será como antes amanhã” vem pra nos lembrar que as lembranças de um passado glorioso não devem impedir que tempos melhores possam surgir. Já “Paisagem na Janela” é um protesto contra os militares muito mais criativo do que professores de história fazem as canções de Chico Buarque parecer.
E a recente descoberta sobre a identidade dos dois garotos que estampam a capa? Um deles sequer sabia que estava em um disco, mas na hora se reconheceu ao lado do antigo amigo. “Eu me lembro desse dia!“, afirmou. E talvez essa seja a melhor descrição para o que Clube da Esquina evoca em cada um que se deixar levar. Quando pego o vinil para ouvir, não penso em uma esquina de Belo Horizonte, no Brasil dos anos 70 ou mesmo em cenários bucólicos. Eu me lembro da minha avó com Alzheimer em São Vicente, da alegria boba da tia recém-falecida e do cunhado mineiro, que ronca que é uma beleza.
Me recordo da vez que vi um marimbondo entrar num lustre e morrer no exato momento em que a orquestra entra em “Um Girassol da Cor de seu Cabelo”. E também das vezes que fiquei igual bobo observando a paisagem pela janela do ônibus ou da sacada de apartamentos, pensando em paixões distantes. Acima de tudo, lembro. Lembrar é viver.
É a sensação de individualidades peculiares convivendo em harmonia no coletivo, a liberdade de andar descalço em terrenos sujos, a consciência de que lágrimas não expressam apenas tristeza. A fragmentação da realidade como forma de constatação dela, o sentimento inigualável de que sua relação com algo já não cabe mais em palavras, e muito menos em parâmetros formalistas e frígidos. É o melhor disco já lançado na história desse país, e ponto final.
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