Jamily Rigonatto
Quão falsas podem ser as interações da família que vemos todos os domingos com suas bíblias e crucifixos em mãos? Essa e outras reflexões similares são a proposta de Carvão, filme brasileiro dirigido por Carolina Markowicz. Entre tons hiperbólicos e reviravoltas, a produção se debruça sobre as contrariedades da moral humana. Parte da seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o longa desmonta a farsa do conservadorismo e a transforma em cinzas.
A história nos guia pelas vidas de Irene (Maeve Jinkings), o filho Jean (Jean Costa) e o marido Jairo (Rômulo Braga). A protagonista acumula responsabilidades com o trabalho, cuidados com a casa e com a família, e ainda tem um pai doente e acamado para somar às demandas. Enquanto isso, o esposo se mostra machista e impaciente, mas nada interessado em trabalhar para contribuir com os interesses da residência.
A dinâmica desigual se mostra insustentável e, é claro, na primeira oportunidade o fio que segura os princípios éticos é o primeiro a se romper. Cansada de lidar com o parente, Irene recebe uma proposta irrecusável da nova enfermeira do posto de saúde. A solução é simples e mata dois coelhos com uma cajadada só: se livrar do pai enfermo e ganhar uma boa quantia em dinheiro.
Sumir com o idoso é fácil, ele não se movimenta sozinho e a família é dona de uma carvoaria com o forno grande o suficiente para que uma pessoa desapareça. A parte difícil vem depois, com a hospedagem de um argentino foragido por tráfico dentro de casa. A situação se desenrola em incômodo e encorajamento, e a chegada de Miguel (César Bordon) desperta em cada personagem uma reação singular.
Em pouco tempo, a presença do estrangeiro revela a frustração do casamento de Irene e Jairo. A mulher passa a ver na visita uma forma de expor seus desejos, iniciando uma tentativa de sedução e adultério. A infelicidade é mútua, o marido, versado em uma virilidade danosa, na realidade mantém um caso amoroso com o vizinho. No meio das pontas soltas temos Jean, a criança lidando com uma criação tão ausente a ponto de ver no traficante uma oportunidade de afeto.
Conforme cada uma dessas questões nos vai sendo apresentada, mais absurdo todo o cenário parece. Ao mesmo tempo, as peças se movimentam com uma fluidez ímpar, promovida pelas características atraentes do roteiro – também assinado por Carolina. Com elementos simples e uma casa pouco luxuosa, Carvão consegue nos levar para um universo muito identificável na sociedade brasileira atual, aquele em que a imagem familiar é puramente um produto da hipocrisia.
Uma das maiores influências da capacidade arrebatadora de Carvão são as atuações. Maeve Jinkings estrela as cenas com tanta naturalidade e verdade que somos capazes de sentir a tensão presente em seus movimentos inquietos, exposta a cada possibilidade de alguém encontrar Miguel escondido no quarto de seu pai. O traficante também não fica para trás e, de maneira sincera, César Bordon cria um personagem encantador – mesmo esse ironicamente sendo o único a assumir seus desvios de moral.
O destaque fica para o desempenho de Jean, que, com a típica sinceridade das crianças, dá à narrativa os pingos cômicos necessários. Sua performance também carrega uma sensibilidade quase dolorosa: em diversos momentos, ao presenciar as cenas grotescas da atitude dos pais, vemos as consequências refletidas em sua composição como ser humano. Instintivamente, a vontade do telespectador é tirar a criança de dentro da tela e a proteger de toda a crueldade.
A construção fotográfica da produção também não poderia ser melhor. As escolhas do diretor de fotografia, Pepe Mendes, reforçam o cenário autêntico que abriga a narrativa, sem perder o foco nas feições. As imagens ainda abraçam pequenos detalhes, como o suor e a sujeira nas peles da família, a fumaça da carvoaria e o plano geral com a presença da natureza característica das pequenas cidades brasileiras.
Carvão não precisa de muito para levantar grandes reflexões, sendo capaz de gerar debates sobre o valor do idoso no Brasil, a negligência com a infância e os limites das aparências. À primeira vista, sua história pode parecer um exagero, mas se pensarmos bem o disparate mora ao lado. E exatamente por isso o filme consegue nos prender: tudo é tão ficcional quanto um assassino que defende a moral, a pátria e a família.
Assim como acontece na vida, muitas vezes nossos erros são pagos por terceiros. Irene e Jairo têm seus desfechos como começos, em uma igreja. Ninguém parece ter medo do julgamento dos céus e muito menos do dos homens, aquilo que permanece no fogo vira cinza e não fantasma. Para Jean, o caminho parece pautado pelo sangue da mão dos pais – infelizmente alguém carrega as pedras do caminho, é inevitável. O importante é que em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, a mesa do jantar permaneça intacta.