Vitória Vulcano
Inúmeros são os prismas musicais de origem latina que despontam na indústria atual. A efervescência emergida de tantos ritmos vira elixir não somente rompendo com a hegemonia maçante da língua inglesa nos centros de visibilidade, como também investindo em criar, revisitar e renovar leituras artísticas. No entanto, mesmo ascendida nesse cenário difusor de novidades, Nathy Peluso surpreende no mínimo e no estrondoso desde o início de sua carreira.
Das mixtapes autônomas aos visuais ousados, a cantora e compositora de Luján nunca deixou de abraçar o imprevisível e, analogamente, personalizar seu lugar de destaque. Catapultada para a história mundial, alastrada em Calambre e, por fim, participante dos indicados ao Grammy Awards 2022: sua essência ardente é banhada na revolução da autoafirmação.
Nascida em berço argentino, Peluso explorou a juventude em solos espanhóis. Entre os covers em hotéis e restaurantes e as declamações de poesia improvisada nas ruas, sua trajetória foi introduzida por pura diversidade expressiva. Foi assim que, munida de sequentes estudos universitários em dança e artes visuais, a estreia independente da artista esbanjou sua surgente competência na combinação colorida de hip-hop e trap.
A investida mais robusta de extrapolar amiúdes veio em 2019, com La Sandunguera. Os gêneros musicais já aproveitados foram apimentados pela cativação de soul e R&B no novo EP, dando a Nathy projeção gritante para embarcar em sua primeira turnê, se apresentar em grandes festivais e, enfim, assumir contratos com a renomada Sony Music. Cravada com peso no amplo mercado, a jovem decidiu incorporar a melodia fusionista por inteiro e continuar liderando sua narrativa imponente – agora, em um major álbum.
Com design de capa motivado pela ilhota de Grace Jones, o projeto cumpre expectativas ao não restringir sua internacionalidade às gravações intercambiadas entre América do Sul, Norte e Europa. Mesclando do farfalhar urbano ao reluzir clássico, o atrevimento mais envolvente do primogênito de Peluso é o de se completar pelo pluralismo, sem designar focos de atenção. Essa atmosfera potente, tensionada propositalmente no intercalar de arranjos multi-instrumentais, é devidamente monopolizada pelos gênios artísticos e pessoais da argentina.
Diversão e solidão, amor e luxúria, imediato e nostálgico: todos são antagonismos ambiciosos entrelaçados nas fibras de Calambre. O batismo é bruto – cãibra em tradução literal – justamente por representar o golpe eletrizante desenvolvido e conectado por suas dezenas de facetas. Emitindo chamas e atormentando regularidades, a dúzia de faixas sabe calibrar movimento físico e mental. E a variedade de estados contemplados nesse processo diminui as muralhas da cantora para mostrar que sentir se torna uma obrigação do chocar.
Estruturar um conjunto tão imersivo e complexo exige a legitimação ditada, aqui, pela união de produção versátil à composição enfática. A primeira ficou quase totalmente nas mãos premiadas de Rafa Arcaute, conhecido por dirigir realizações de Shakira a Ricky Martin. O domínio da última é resultado da presença de Nathy em todas as letras do LP, o que a permite conceituar personagens e atitudes de si mesma em perspectiva expandida. Consequentemente, a materialização dessa equação é declarada já nos momentos iniciais da jornada de celebração da artista: “Eles me prometeram muita abundância/Mas eu me recusei a ser sua presa”.
Quando o trap regado a violinos de CELEBRÉ se dissipa, a avidez categórica – assinatura de longa data da cantora – permanece vibrante. Referenciando uma das lendas do folclore argentino, o sentimento entoa pelo misto de R&B e reggaeton que é AMOR SALVAJE. Tão provocativa quanto seu título, a discussão amorosa parte de melindres clichês e esmorece no calor da intimidade corporal, encenando trechos da comicidade que se apaixonar perdidamente causa (e Peluso adora reproduzir).
A teatralidade, sobretudo, tem uma sondagem especial nas canetadas espelhadas pelo teto de vidro da jovem. Avançando feito constante nas eloquências do disco, os ímpetos imaginativos focam na audácia de enfrentar inquietudes e iniciativas de Nathy diante da plateia pública. E TRÍO consegue ser a captura máxima desse viés. Revelada de improvisos e protagonizada por fantasias sexuais, a canção também sintoniza rhythm and blues noventistas a uma cadência similar a batimentos cardíacos. Nas minúcias das intimidades destrinchadas, a transmissão do motor sinceridade é eficaz o bastante para se dilatar na tenacidade posterior de Calambre.
Técnica assídua de Peluso, o balanceamento da febre de performances artísticas à delicadeza da vulnerabilidade expressiva reverbera no álbum. Seja na miscelânea harmoniosa concebida por jazz e hip-hop, que emerge da autoestima salpicada em SUGGA, ou através da aura misteriosa e paradoxal de ARRORÓ, uma balada melancólica à la ROSALÍA, o destino da artista não se consolida. Ser autocentrada vira seu incentivo para vasculhar o fervor do mundo. Entre a segurança (“Com um caramelo na boca, ela o forçou a sonhar”) e a fragilidade emocional (“Como você pôde quebrar a promessa?/Como você se foi se minha alma te beija?”), o ego aprende, no ato, a se redescobrir e se fascinar por versos generosamente humanos.
Para além do lirismo concentrado, vertentes políticas rasgam, fugazes, a óptica múltipla do CD. Tributo a Mercedes Sosa, crítica explícita ao Fundo Monetário Internacional e reinterpretação de cantigas infantis da Argentina – SANA SANA tange a História para ressignificar o país latino-americano. Repetindo o refrão como mantra, a cantora exalta suas habilidades e muitos elementos culturais de seu povo, enquanto mistura ironia e afronta à precisão de um trap rítmico. Longe da passividade, ela entrega um diálogo sobre pertencimento: “Nossa nação tem um longo e doloroso histórico, com muitas dívidas, mas também com perseverança“.
Usando e abusando de gêneros altamente radiofônicos, a concepção do LP se influencia por hits cozinhados nos anos 2000 e evidentes até na era TikTok. Tático nesse contexto, o reciclar do desejo exacerbado sendo aludido a um crime é a aposta que transpira comercialidade, em um quadro louvável e nítido: preservando a autoria de Nathy. Apesar de mirar em rotas mais destemidas que a vendável, Calambre se dá ao luxo certeiro de interpolar essas memórias férteis para enriquecer e determinar ainda mais a prosa exposta.
Inevitavelmente, a desvinculação de pretensões do passado (ou do óbvio) para o engrandecimento de emoções atemporais também se sucede. Pela percepção sensorial do embate travado entre soledade e solitude, o despencar de Peluso na epifania se salienta em deleitosos convites coletivos. BUENOS AIRES equilibra o taciturno do silêncio a reflexões libertadoras, sempre conduzida pela claridade do neo-soul e ornamentada por leves contribuições de rock. Na mesma toada sonora, LLAMAME tenta esboçar a inspiração genuína vista na representação da capital argentina e termina insuficiente – o que explica porquê só uma das faixas promoveu o disco na vitrine das cerimônias musicais.
Antes de proclamar a plenos pulmões que não pede perdão nem permissão, Nathy inaugurou sua última era lutando para reduzir a pó o falatório e a injúria. BUSINESS WOMAN, primeiro single e clímax do álbum, é bem mais que o triunfo estilístico ao seu rap eloquente. Alegorizando autoconfiança, malícia, sucesso e poder, a autoridade da jovem é a de se acomodar na fogueira com seus deslizes e virtudes, sabendo que a combustão de tantos pormenores só a vilaniza no curso de intenções meritórias e próprias. Letal e sugestiva, patinando por espanhol e inglês, ela é o diabo se quiser: “Pergunte-se o quanto me odeia, o quanto me ama/Não vim te dar lições nem fazer sua cama”.
Em dimensões passadas, a argentina já formulava contundência e perspicácia em discursos naturalizados no feminismo. Calambre por si só floresce do movimento. Mas, o auge da irreverência resplandece no êxtase de BUSINESS WOMAN pela expansividade deliciosa das reivindicações. Debruçada na notoriedade de uma musicalidade feita à base de denúncias e cada vez mais nutrida de transformações, a cantora exala uma obstinação que só pôde ser provada pela nobreza de não enclausurar suas composições em formato de tendências passageiras.
O dueto responsável por encerrar os enérgicos quarenta minutos caminha pelos poros abertos resgatando, com fôlego de virada, as raízes da artista. Afinal, tratando-se de Nathy e Argentina, o ciclo é retroalimentar. O fervor que despertou a jovem regenera sua relação com a Música e o universo e, simultaneamente, as faixas também funcionam como simulacro de Calambre. O término não pontua linearidade ou finda trilhas. É o enaltecimento da profusão despejada por toda a obra.
PURO VENENO e AGARRATE funcionam como fotografias dos estágios de um luto romântico, buscando estampar um renascimento particular, muito pleno no decorrer do projeto. O começo da passagem transita entre negação e barganha, confundindo a toxicidade palpável ao prazer de ser amada. A impureza que induz ao desejo dilacerante de escape é comunicada pela salsa, evocando o imaginário melodramático de um tipo musical ideal para fundir dança e dor.
A surpreendente canção final mergulha sua introdução no ínfimo da tristeza, deixando o lado mais sombrio do tango coreografar o ritmo lento e aturdido de perda. “E, agora, meus beijos te pedem perdão/Por acreditarem que havia luz nessas mãos/Por saberem antes de você que isso tinha acabado“. Contudo, choradas as lamúrias, as sobreposições de hip-hop se manifestam rapidamente na metade seguinte, transfigurando os pesares em insubordinação: “Você acha que sabe sobre vida e dinheiro/Mas não experimentou mulheres como eu“. A ruptura é ironicamente intuitiva: culminando no agridoce processo curativo, expurga tudo o que não condiz com o reflexo ressurgido da artista.
Vasto no desvendar da sonoridade e arrebatador no trâmite lírico, Calambre celebra o primor do ecletismo e não esgota nem sua própria modelação. É a evolução autêntica e de visível extensão que possibilitou a Nathy Peluso rechaçar temáticas badaladas do mainstream quase de maneira vanguardista, engolindo forças e vícios do meio e convertendo-os em recursos ostensivos. O estraçalhar criativo do disco ainda estabelece sua melhor dádiva no todo: em cristalizadas contradições, a cantora se dá inteira e única. A assertividade foi tamanha que, colhendo os frutos de sua curadoria, ela tem se realçado como subversão necessária no tabuleiro musical.
Polemizando na bachata com C. Tangana e deslanchando no savvy-pop de Christina Aguilera e Karol G, sua figura já é magnética em parcerias de ouro. Recorrente nas listas do Grammy Latino desde 2020, seu nome alcançou a primeira indicação na 64ª versão estadunidense da premiação, em Melhor Álbum Latino de Rock ou Música Alternativa. Com uma individualidade incendiária e pronta para mais, o legado da artista argentina cresce tão vívido quanto o motim incitado por ela e ressoado por Calambre: “está tudo bem em reconhecer o que você sabe fazer”.