De artista a xamã: 40 anos da morte de Bob Marley

A imagem retangular está em preto e branco. Ao centro vemos Robert Nesta Marley, um homem negro, de dreadlocks longos na altura do ombro e barba rala e rústica. Ele possui um rosto magro e olha para baixo, enquanto está sentado ele usa uma camiseta de manga longa aberta branca e uma calça jeans. Sobre seu colo ele dedilha uma guitarra modelo Gibson. Ao fundo podemos ver um sofá escuro à esquerda e uma parede branca.
Bob Marley era rejeitado em sua infância pela sua cor de pele mais clara em relação aos demais; muitos dizem que esse fator ajudou a moldar o caráter a lenda do reggae (Foto: WorldWarXP)

Vitor Tenca

Roubado da África, trazido para América. Há exatos 40 anos, no dia 11 de maio de 1981, perdíamos Robert Nesta Marley, o eterno Rei do Reggae. Com apenas 36 anos de vida, a voz mais conhecida de uma nação e de um estilo musical parou de ressoar por conta de um câncer, deixando para trás uma carreira triunfal e um legado de paz, amor e união. O homem-para-raio atraía controvérsias e debates em um período em que as discussões não se incitavam, mas se acabavam – ele ensinou que deveríamos levantar e resistir por nossos direitos, um por um.

O reggae que conhecemos hoje é proveniente de muitas mutações de estilos musicais diferentes, como o ska e o rocksteady, alterado para um ritmo mais “preguiçoso e swingado”. E os responsáveis por popularizar esse gênero foram três garotos de Trenchtown: Robert Marley, Neville Livingston e Regg Winston McIntosh, os integrantes de Bob Marley and The Wailers, a sensação jamaicana atemporal. Porém, é claro que os traços militantes, o sucesso meteórico e os apelidos famosos dos cantores não vieram de imediato.

Inicialmente, o jovem grupo de lamentadores (tradução da palavra wailers) passou por uma fase mais pop, resultado da inspiração de músicas estadunidenses que tocavam nas rádios. Mas, sob a tutoria de Joe Higgs e o comando de Coxsone Dodd, o trio alavancou um linguajar mais crítico, algo mais semelhante ao ideal rasta, deixando de lado letras doces e leves – extremamente válidas numa Jamaica tomada por gangues e violência. E assim, o sucesso começou a surgir.

A imagem retangular possui um filtro esmaecido por cima. Ao centro e acima vemos uma bola de futebol, branca com detalhes hexagonais em preto. À direita vemos Bob Marley, um homem negro de dreadlocks e barba rala porém cheia, com uma rosto magro encarando a bola. Ele usa uma touca de tricô com o padrão rastafári com as cores branca, preta, amarela, verde e vermelha. A foto o corta da cintura para cima e ele usa uma camisa de manga longa verde.
Bob Marley, assim como a maioria dos jamaicanos, era apaixonado pelo futebol (Foto: Revista Cifras)

Em 5 de dezembro de 1976, ergueram-se os palcos para o Concerto Smile Jamaica, um dos eventos de maior importância no status de figura pública de Bob. No auge da fama e também da violência política local, os reggaemen decidiram fazer um show gratuito para toda a Jamaica. No entanto, uma guerra fria protagonizada por dois partidos políticos impregnou até mesmo o clima vibrante, e o que era para ser uma celebração virou uma tragédia: um atentado a tiros na famosa Hope Road, 56, deixou Robert, familiares e amigos feridos. Mas, o show não poderia parar, e, no dia seguinte, o concerto rolou com uma energia ainda mais martirizada, prévia à um auto-exílio

O responsável por internacionalizar a banda foi Steve Nash, o artista americano que protagonizou uma recepção fria, tanto no sentido literal quanto figurado: os astros das terras quentes agora se encontravam em uma Londres gelada, chuvosa e sem público. Largados sozinhos e sem dinheiro, Chris Blackwell teve um papel vital na carreira do grupo com seu olhar, ou melhor, sua audição visionária em relação ao potencial do reggae internacional. O êxito veio de forma natural em meio a uma atmosfera volátil, revolucionária e jovem que predominava na Inglaterra – um exemplo disso é o show no bar Speakeasy, quando vimos o primeiro negro tocar em um dos clubes ingleses mais famosos de todos os tempos.

De qualquer forma, nem tudo são flores. Conforme o sucesso foi crescendo, a concentração de importância da imagem de Bob acima dos wailers deixava Bunny e Tosh com um pé para fora. Junto a isso tudo, o estilo de vida longe da terra natal e as novas experimentações rítmicas dentro dos estúdios pareciam desprender os integrantes de seu ideal rastafári. Por fim, em 1974, Wailer e Peter deixaram de vez a banda, levando a uma nova fase do maior sucesso do mundo do reggae.

A imagem retangular tem um filtro em preto e branco. Da esquerda para a direita vemos oito homens. Todos eles são negros e ou utilizam dreadlocks ou boinas que cobrem seus cabelos. Eles usam jaquetas de couro escuras e casacos de frio de tecido. Há uma fileira de quatro homens de pé mais à direita e cortando-os ao meio há uma fileira de quatro homens agachados centralizados na imagem.
A banda, que começou com um trio de garotos de Trenchtown, terminou como uma orquestra composta por gênios da música (Foto: UCSfm)

Bob Marley e os novos wailers – agora quase uma orquestra completa – concluíram uma discografia composta por álbuns e discos que transcendem seu próprio gênero musical. Kaya, Live!, Survival, Burnin’ são alguns dos lançamentos que guardavam relíquias sonoras como é o caso de Buffalo Soldier, Redemption Song, No Woman, No Cry e outras joias que se eternizaram no imaginário mundial. Quem não sabe recitar as letras de Is This Love? Ou mesmo Three Little Birds?

Um fator importantíssimo para o sucesso da carreira de Marley, para além de seu personagem messiânico, era o fator linguístico que permitia que suas músicas e ideias fossem escutadas em escala global. O charmoso inglês local jamaicano somado a ideia “baderneira” das melodias chegava às rádios e aos ouvidos de jovens americanos e europeus, apesar deles não terem sido o único público atraído – os boatos de Bob integrar as listas de observação da CIA eventualmente viraram verdade. A paz não era nada mais que um contratempo.

E não era à toa que o Rei do Reggae também possuía uma relação tão próxima com o Brasil, já que um povo oprimido e marginalizado reconhece o outro, e reconhece também suas conquistas e façanhas. Do simples ato de jogar bola com Chico Buarque até o lançamento de covers e discos-tributo de Gilberto Gil, vemos que as mensagens de compaixão destinadas para sua própria terra caberiam facilmente ao povo brasileiro – principalmente nos dias de hoje.

Marcus Mosiah Garvey é considerado o principal idealista do movimento de “volta para a África”. Essa linha de pensamento pregava que o povo negro se reconectasse com suas raízes africanas, por meio do conhecimento da sua origem e ancestralidade que lhe foram retiradas com a expansão da escravidão no mundo. Foi por meio disso que a rastalologia foi importado para a Jamaica – além de uma religião, é também um movimento social que adota o pan-africanismo, a luta pelo direito dos negros, a purificação via ganja e, acima de tudo, o amor ao próximo.

Bob Marley e o reggae contribuíram diretamente para a difusão da mensagem que essa filosofia prega, vestindo essa crença de dentro para fora, dos seus dreadlocks e barba intocáveis ao espírito justo e simpático do compositor. Mas, independente da mensagem pacífica que os rastafáris queriam passar, o público não fazia questão de recebê-la – muito pelo contrário, os viam como arruaceiros e baderneiros que incitavam o uso de drogas, a rebeldia e quebra da ordem. 

No entanto, um preconceito mal embasado não iria abalar a genialidade de Marley, que partia de uma interpretação genérica e básica do conceito de justiça, respeito pelos direitos básicos e dignidade. Dado esse entendimento para um homem com uma capacidade magistral de se comunicar e, que ao mesmo tempo, conseguia de alguma forma captar e expressar o sentimento geral de uma nação, tínhamos então o melódico resultado final de paz, amor e resistência ao longo de sua extensa e triunfante carreira.

 A imagem retangular mostra Bob Marley centralizado na foto. Ele é um homem negro, com dreadlocks, barba rala e cheia ao mesmo tempo, um rosto magro que olha para fora da foto. Ele usa uma camiseta de manga longa aberta no peito, similar as roupas de Elvis. A imagem o corta pelo meio enquanto ele segura e dedilha um violão de madeira clara. Ao fundo vemos uma garagem e uma mata com flores.
Um fato curioso: no retorno de Marley a Jamaica, uma terremoto havia atingido a ilha, porém as manchetes de jornais mal noticiavam o fato (Foto: Yard Hype)

De uma forma quase mágica, houve um cessar-fogo nas disputas entre gangues, e, em 22 de abril de 1978, foi realizado o Concerto One Love. E quem melhor para realizá-lo se não o maior herói nacional jamaicano? A volta de Bob para a realização do show é sem sombra de dúvidas o momento mais mítico de sua carreira. Foi assinado por um raio que finalmente a transição artista-xamã aconteceu, selando essa passagem com um aperto de mãos entre os dois líderes políticos mais opostos possíveis.  

Ainda assim, o rastafári consegue produzir uma ambiguidade crucial. Ao mesmo tempo que essa linha de raciocínio moldou e concretizou um homem que batalhava por sua visão de mundo, ela retirou de nós um dos maiores músicos já vivos. Um câncer de pele que crescia debaixo de sua unha poderia facilmente ser tratado e ainda veríamos Robert vivo, atualmente com seus 76 anos. Mas, seguindo a ideia de tratamento natural de um corpo, visto como um templo intocável, a doença apenas o deteriorou até seu destino terminal.

Robert Nesta Marley lutou do seu próprio jeito. Sua violência era rítmica, suas armas eram palavras, sua legião era gigante e seu amor era para todos. O gênio de uma geração, nação e estilo foi responsável por incendiar a mente de muitos ouvintes e seguidores, além de propagar uma ideia completamente fora de um padrão exclusivo. Assim como ele mesmo se propunha, “a vida é para quem topa qualquer parada. Não para quem para em qualquer topada”.

 

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