João Pedro Piza
A Segunda Guerra Mundial, em muitos aspectos, mudou os rumos da humanidade. As atrocidades presentes no front, o medo constante da vigilância proveniente dos membros dos Estados totalitários e o horror disseminado pelas mais modernas técnicas de batalha forjaram no inconsciente dos cidadãos europeus um grande sentimento de desesperança. A Inglaterra, uma das potências mundiais da época e, por isso, grande alvo de Hitler na parte ocidental do continente, foi bombardeada pelos aviões alemães da Luftwaffe em 1940. Sob escombros e com pelo menos 450 mil mortos, os ingleses buscavam reestruturar o país a partir dos anos 1950, após a vitória dos aliados e dos efeitos do Plano Marshall. Mas não era nada fácil.
Nesse contexto, seria pouco coerente as manifestações artísticas do cenário cultural de Birmingham, cidade industrial e protagonista da metalurgia na Inglaterra, rodeada pela miséria, desemprego e crises, apresentarem o mesmo tom de paz, amor e esperança dos hippies — especialmente poetas e músicos norte-americanos. Dessa forma, Ozzy Osbourne, Tony Iommi, Geezer Butler e Bill Ward possuíam uma ótica pessimista e distópica no que tange a maneira de encarar a sociedade e ver o futuro. Naturalmente, trocaram as roupas coloridas e as flores por jaquetas de couro e crucifixos.
Influenciados também pelo Cinema de Horror, os quatro passaram a tentar transmitir a mesma sensação de pânico e melancolia ao assistir a um filme às primeiras composições da nova banda que formaram — já que o nome previamente escolhido pertencia a outro conjunto. Como ensaiavam perto de um cinema, viam de perto as multidões que se aglomeravam para sentir medo — como se a realidade do pós-guerra não bastasse. Entre os principais longas presentes nas sessões, estavam os do diretor Mario Bava. Inspirados por um de seus preferidos, decidiram que o nome da banda seria Black Sabbath — com Ozzy assumindo os vocais; Tony Iommi, a guitarra; Geezer Butler, o contrabaixo; e Bill Ward, a bateria.
Curiosa e ironicamente, o som característico do quarteto é proveniente de um grave acidente envolvendo o guitarrista. Enquanto trabalhava em uma fábrica, no seu último dia de trabalho, Iommi prendeu sua mão em uma máquina que cortava placas de ferro e teve as pontas de seus dedos anelar e médio da mão direita — a que fica no braço do instrumento — decepadas. Para continuar tocando, precisou utilizar cordas mais finas, acordes simples — utilizando escalas pentatônicas e power chords — e afinação baixa.
Dessa forma, com certo grau de coincidência, o novo timbre desenvolvido é bastante soturno e obscuro. O baixo e a bateria seguiam uma linha parecida. Butler aprimorou a maneira de conduzir as levadas, abusando de quebras das tônicas, buscando notas um pouco mais agudas, como as oitavas. Bill Ward, por sua vez, adaptou viradas e ritmos do blues e do jazz a uma batida sólida e muito pesada.
Para o som denso vindo da guitarra, as letras não poderiam destoar. Desse modo, temas inspirados na literatura ocultista, em filmes de terror e em manchetes que abordavam acontecimentos caóticos figuravam o repertório em formação. Diferentemente de outras bandas da época, o Black Sabbath soube usar doses de fantasia unindo-as à situação pela qual viam o mundo, para, enfim, formular uma crítica aos valores bélicos, à corrida armamentista e à ordem capitalista entrando em vigor aos poucos ao longo da Guerra Fria.
Com o conceito e som definidos, rapidamente trabalharam nas primeiras canções, que foram lançadas no ano de 1970 em um álbum de mesmo nome que a banda — gravado e mixado em incríveis 18 horas. A começar pela capa assustadora, mostrando uma figura vestindo uma capa preta em frente ao que parece ser uma casa mal-assombrada, a faixa inicial Black Sabbath é de tirar o fôlego — e o sono. Iniciada por sons de sinos, chuvas e trovões, a guitarra de Iommi entra de maneira cortante com um riff memorável.
Após a primeira nota, a banda o acompanha, gerando um clima de tensão e pânico. Logo Ozzy começa a contar experiências de uma perseguição misteriosa. Aos poucos, nos questionamos o que é aquela figura ou sua mensagem — o apocalipse? A morte? — à medida que somos conduzidos a um ambiente eufórico. Para finalizar, há um dos muitos solos espetaculares do guitarrista.
Em seguida, outro clássico: The Wizard. Com Ozzy tocando gaita, uma das poucas na carreira da banda, Bill Ward e Geezer Butler a conduzem como um blues. Tony Iommi repete os sons do instrumento de Ozzy na guitarra, gerando uma combinação interessante e ao mesmo tempo curiosa, porém sem perder suas características. Na letra, composta pelo baixista — assim como todas do álbum —, fala-se sobre a presença de um mágico na Terra, que expulsou diabos e “transformou lágrimas em felicidades”. Se a faixa anterior possuía uma mensagem de certa positividade, a seguinte é bem diferente. Behind The Wall of Sleep fala sobre angústia, morte e reflexões existencialistas, sendo inspirada em um conto de H. P. Lovecraft.
A última faixa do lado A é um clássico absoluto e uma das mais tocadas nos shows. N.I.B mostra a genialidade de Geezer Butler em um solo inicial que se tornou o sonho de todo baixista em reproduzir, especialmente por apresentar o som de wah-wah e outras distorções. Com um riff bastante conhecido, quem conduz essa faixa é o contrabaixo e não a guitarra — como de costume na discografia da banda.
Na letra, ironicamente, há uma história e declaração de amor. Todavia, como se trata do Black Sabbath, ela acontece entre Lúcifer e uma mortal. Na época de seu lançamento, muito se questionou sobre o significado do nome da música. Muitos diziam que seria Nativity in Black; porém, era uma brincadeira interna em relação à barba de Bill Ward, que, segundo os membros, lembrava a ponta das canetas nibs.
Abrindo o lado B, Evil Woman é o primeiro cover do álbum e foi uma sugestão do produtor Rodger Bain a fim de projetar o quarteto ao mercado norte-americano. É a canção mais radiofônica, de fato. Inclusive, foi o primeiro single. Diametralmente oposta, em Sleeping Village retorna o peso característico. Bastante arrastada, Geezer e Ward abrem o caminho para Iommi mostrar sua genialidade.
Usando violões — que imprimem um clima até bucólico — e estruturas de blues, ele quebra tudo. A temática obscura volta a estar presente; dessa vez, questionam o quão próximo estamos do apocalipse. E se realmente estivermos, torcem para que estejamos dormindo no momento final.
Na sequência, vem a mais longa do disco. Warning passa dos dez minutos e, mais uma vez, a guitarra rouba a cena. Em mais um cover, a influência do blues é presente, porém com uma roupagem um tanto psicodélica — característica essa perceptível pelos três solos de guitarras bastante distorcidas, distanciando-se das linhas da bateria e do contrabaixo. Nos mais de sete minutos instrumentais, a inspiração ao saudoso e genial Jimi Hendrix é perceptível.
Para terminar a obra, não haveria escolha melhor que Wicked World. Iniciada por um riff simples e marcante, Geezer conduz a densidade da música por meio de uma força descomunal ao imprimir o ritmo das galopadas do instrumento. A reflexão da vez é sobre algumas relações de trabalho e como elas constroem um certo simbolismo hipócrita na sociedade.
Na estrada, o Black Sabbath chocou cada espectador que teve o prazer de vê-los na sua origem. Aos poucos, passou a figurar a tríade sagrada do rock dos anos 70 ao lado de outros dois gigantes: Led Zeppelin e Deep Purple. Entretanto, eles possuíam algo diferente dos dois e das demais bandas anteriores. Eles eram maus, pois tratavam de temas provocativos à época com elevados graus de obscurantismo e descrença nos seres humanos — com um pé até no niilismo.
Por esse tom, encabeçaram o que conhecemos hoje como heavy metal. Aliás, a discussão sobre quem inventou o gênero de fato ou compôs a primeira música nesse estilo abrange alguns critérios amplos e até cansativos — alguns até dizem que os Beatles foram os pioneiros com Helter Skelter.
Fato é: o quarteto de Birmingham foi o primeiro a definir uma estética compacta e um conceito sólido em seu primeiro álbum, influenciando uma série de outras bandas que vieram em seguida. Iron Maiden, Judas Priest e Metallica, por exemplo, não existiriam sem o Sabbath. Pelo menos, não da maneira que conhecemos hoje.
Em mais de 50 anos de carreira e inúmeros álbuns memoráveis, portanto, os hoje idosos sabáticos são exaltados como revolucionários no mundo da Música e responsáveis por servirem como porta de entrada às novas gerações roqueiras. Mesmo tirando nosso sono em alguns momentos ou causando certas provocações inquietantes, conquistaram um lugar na história e outro especial na memória de uma legião de adoradores.
Parabéns João Pedro Piza pelo artigo tão bem elaborado e escrito
Parabéns João, texto bem escrito, embasado, detalhado e bem ilustrado (fotos e vídeos). Ficou ótimo.
Parabéns pelo texto. Subscrevo o que foi dito acima!
Muito legal. Parabéns João. Já enviou pra midia especializada no assunto?