Aviso: o texto a seguir apresenta conteúdos sensíveis sobre violência, LGBTQIA+fobia e suicídio, que podem servir de gatilho para alguns leitores.
Gabriel Gatti
A Chechênia é uma das repúblicas da Federação da Rússia, localizada na região do Norte do Cáucaso, onde a maioria da população é muçulmana sunita. Esse ambiente peculiar é governado sob punhos de ferro pelo tirano Ramzan Kadyrov, a quem o presidente russo Vladimir Putin apoia. A gestão do governante tornou o local em um triângulo das bermudas dos direitos humanos para LGBTs, em que as famílias são incentivadas a matar seus parentes que não sejam heterossexuais. Desse modo, os hábitos doentios dos chechenos serviram de inspiração para o diretor David France no documentário Bem-vindo à Chechênia, indicado ao Emmy 2021 na categoria de Mérito Excepcional em Documentário.
Com a missão de retratar esse massacre, Bem-vindo à Chechênia constrói sua narrativa seguindo três pilares: depoimentos das vítimas, entrevistas com ativistas que atuam sob as sombras do Estado e imagens perturbadoras de violência contra LGBTs. Utilizando esses fatores, France desenvolve a história do grupo minoritário que recorre a um abrigo, onde os indivíduos são acolhidos até conseguirem emigrar para outro país, geralmente o Canadá. No meio de toda essa trama conturbada, o diretor ainda insere trechos de entrevistas e falas do ditador Kadyrov marcadas por ódio e intolerância para com as pessoas LGBTs.
No desenvolver do documentário, vários casos de perseguição e assassinato são apresentados, mas um deles se destaca. Zelim Bakaev era um cantor de música pop com a carreira em ascensão. No entanto, em 2017, o artista desapareceu após ser, supostamente, torturado pela autoridade da Chechênia. Essa brutalidade ocorreu por suspeita do jovem ser gay. A notícia de seu desaparecimento tomou o globo, mas até hoje, não há indícios de onde foi parar o corpo do rapaz.
Esse é apenas um caso que ganhou notoriedade por se tratar de uma estrela da Música, mas há muitas outras de pessoas anônimas massacradas por indivíduos cegados pela LGBTfobia enraizada em sua cultura. Como forma de pôr um holofote nessa realidade abafada pelo Estado, France adota o formato de documentário expositivo para Welcome to Chechnya, que é seu modo de enfatizar os fatos e os argumentos para aquilo que está sendo mostrado. Em diversos momentos, como quando há uma tentativa de suicídio no abrigo, o filme acaba expondo os envolvidos, mas com o ideal de fazer isso em prol da conscientização para aquilo que ocorre nessa região hostil.
A imersão do telespectador nesse campo de perseguição de pessoas faz com que o documentário apresente uma atmosfera pesada e amedrontadora, mas ao mesmo tempo, tocante. O longa se apresenta como um pedido de socorro de todos aqueles que se encontram em estado de fragilidade, que, por sua vez, tem sua imagem protegida com a utilização do efeito do CGI. Para reforçar a dramaticidade, o diretor também utiliza alguns recursos para tornar sua história mais potente. Esse evento é perceptível quando se fala dos ativistas que, muitas vezes, são retratados com um tom heroico. A percepção dessa característica de Bem-vindo à Chechênia não descredibiliza a força da trama, apenas remete, em certos pontos, ao entretenimento.
Desse modo, David France consegue despertar o telespectador ao amarrar todos os pilares propostos por Bem-vindo à Chechênia, desenvolvendo a narrativa de forma coesa do começo ao fim. Mas muito antes do cineasta, repórter investigativo e autor produzir o documentário, muitos outros longas passaram por suas mãos. O diretor foi nomeado ao Oscar 2013 na categoria de Melhor Documentário por Como Sobreviver a uma Praga, além de assinar A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson. Agora, com Bem-vindo à Chechênia, France já passou por vários festivais, como a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o Festival Internacional de Cinema de Berlim, o Festival Sundance de Cinema, além de concorrer a categoria de Mérito Excepcional em Documentário no Emmy 2021, por ser um filme da HBO. O longa chegou a ser cotado ao Oscar 2021, mas acabou ficando de fora.
France mostra a potência de Bem-vindo à Chechênia quando nos faz refletir sobre as condições dos LGBTs no nosso país. O Brasil, no caso, é considerado bem sucedido na luta, apresentando a maior parada do mundo. Além disso, há artistas de grande visibilidade, como Pabllo Vittar e Gloria Groove, que conquistaram um espaço considerável nos últimos anos. Em contrapartida, foram registrados 175 assassinatos de travestis em 2020 (uma morte a cada 2 dias) segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil (Antra). Como se não fosse o bastante, o presidente Bolsonaro já fez diversos discursos LGBTfóbicos durante sua carreira na política. Esse fato serve de lembrete de que a democracia é uma luta diária, pois todas as conquistas das minorias podem se esvair sem o mínimo de esforço caso não haja resistência.
Portanto, Bem-vindo à Chechênia é daquele tipo de filme que não existiria em uma sociedade democrática e justa, o que comprova que a Chechênia abriga uma comunidade doente devido a gestão de Ramzan Kadyrov. Mas além de ser um documentário, Bem-vindo à Chechênia ainda formou uma instituição que arrecada fundos para salvar LGBTs chechenos que busquem sair do país. Desse modo, pode-se dizer que France produziu uma ferramenta tocante, perturbadora e solidária.