O Desmoronar da Casa dos Sonhos em Barbie

A foto é uma cena do filme Barbie. Nela, temos a atriz Margot Robbie centralizada. Ela é loira, tem olhos claros e usa um chapéu branco de cowboy, além de uma bandana rosa amarrada no pescoço e um brinco prata. Ela está com uma feição séria e uma lágrima escorre do seu olho direito. O frame possui um ângulo fechado, e só é possível ver no fundo desfocado o que aparenta ser um subúrbio.
“Graças à Barbie, todos os problemas do feminismo foram resolvidos” (Foto: Warner Bros Pictures)

Amabile Zioli e Clara Sganzerla

Desde o começo dos tempos, quando a primeira garotinha surgiu, existem bonecas. Porém, elas eram sempre, e para sempre, bebês… Até a chegada da Barbie. Feita de plástico, com cabelos loiros, cintura fina e olhos azuis, a criação de Ruth Handler mudou o inexorável destino da maternidade e expandiu os horizontes – fique tranquila, você também pode brincar de ser designer de moda, astronauta, cantora ou jogadora de futebol. 60 anos nos separam desse marco histórico e Margot Robbie embarca em Barbie para um dos maiores triunfos de sua carreira, nos mostrando que o brinquedo mais famoso do mundo tinha uma história para contar.

Antes mesmo de escolhermos a melhor roupa rosa de nosso guarda-roupa para ir ao cinema, a diretora Greta Gerwig já nos dava pistas da dimensão que ela iria trazer para a obra. Seja pelo teaser trailer que abalou o Twitter ou até mesmo pelas jogadas de marketing que inundaram as redes sociais (todos tivemos um gostinho da Barbielândia com o Barbie Selfie Generator), Gerwig aqueceu o público e o mercado com filme do ano. 

E funcionou. Com altas expectativas, mais de 10 milhões de espectadores lotaram as salas de cinemas pelo Brasil, somando uma bilheteria de 200,8 milhões de reais. Rosa era tudo o que se via em 20 de Julho de 2023: em roupas, sapatos, acessórios e, para os mais empenhados, até fantasias hiperrealistas. Barbie não era apenas para quem amava a boneca e suas animações, Barbie havia dado certo.

 Cena do filme Barbie. No centro, em foco, há a atriz Margot Robbie, que interpreta Barbie. A atriz está dançando, em pé, batendo palmas, e piscando para a tela. Ela veste uma roupa branca com detalhes em prata, está com pulseiras douradas e o cabelo loiro solto. Atrás de Margot Robbie, estão várias outras atrizes do filme, dançando a mesma coreografia e fazendo diversos movimentos. Atrás delas há um cenário rosa que imita casas de bonecas.
Barbie exigiu tanto rosa para sua produção que provocou escassez mundial da tinta da marca Rosco (Foto: Warner Bros Pictures)

Indo de encontro com o que esperávamos, a sinopse do longa-metragem surpreende. O roteiro de Greta Gerwig e Noah Baumbach segue Margot Robbie, a Barbie Estereotipada, em seu dia-a-dia perfeito. Pelo menos até quando, durante um flash mob em sua Casa dos Sonhos, a personagem principal tem um pensamento inusitado que torna seus dias mais imperfeitos do que o normal.

Mau-humor, banho de água fria, waffles queimados, leite estragado e tombos inesperados são algumas das situações que passam a fazer parte de sua rotina. No entanto, é apenas após seus pés se achatarem que a personagem realmente percebe que algo está errado. Depois de visitar a sábia Barbie Estranha (Kate McKinnon), a protagonista abraça a missão de ir ao Mundo Real em busca de respostas. Mas, é claro que o Ken (Ryan Gosling) não a deixaria enfrentar os perigos da Califórnia sozinha.

Cena do filme Barbie. A foto mostra seis barbies do filme, todas sentadas em uma arquibancada na praia completamente cor-de-rosa do cenário. A Barbie de Margot Robbie está no centro, sentada e com uma perna levantada, mostrando seu pé para as outras mulheres. Todas a olham com caras de espanto.
Antes de assumir o papel da personagem principal, Margot Robbie era produtora de Barbie (Foto: Warner Bros Pictures)

Na Barbielândia, os personagens masculinos são representados como coadjuvantes das bonecas, ou das mulheres em geral, contrariando o comum em Hollywood. Depois de assistirmos diversas narrativas embebidas no male gaze, nas quais as figuras femininas desdobram-se pela atenção masculina, Gerwig decide mudar um pouco os eixos ao mostrar os papéis trocados. Barbie é tudo, e o Ken é apenas… Ken. 

Barbie Presidente, Barbie Ganhadora do Nobel, Barbie Escritora, Barbie Doutora e Barbie Jornalista: no mundo rosa, são elas que dominam o cenário mercadológico e social. Elas ganham prêmios, discursam sobre seu sucesso e não são julgadas por escolherem sua carreira – utilizando dessa inversão como arma humorística extremamente potente, o roteiro é cômico, mas não trágico.

A atriz Margot Robbie brincava no set e aplicava multas nos membros da equipe de produção que não usavam roupas rosas às quartas-feiras (Foto: Warner Bros Pictures)

Relembrando seus tempos de La La Land, Ryan Gosling se rendeu, mais uma vez, a um musical muito bem executado. Com uma performance digna de Oscar, I’m Just Ken é apenas uma das canções originais que compõem a sonografia extensa e as coreografias perfeitamente pensadas para cada momento do filme. Além do ator, a trilha sonora de Mark Ronson conta com Dua Lipa, Lizzo, Billie Eilish, Nicki Minaj, Tame Impala e diversos outros nomes de peso.

Não foi apenas a música que atraiu olhares para a performance de Gosling. Interpretar um boneco de plástico cego pelo amor e apaixonado por praia pode parecer fácil, mas só poderia ser feito com tanta excelência por alguém capaz de fluir tão naturalmente entre personagens como K (Blade Runner 2049) e Noah Calhoun (Diário de uma Paixão). Assim nasce Ken, que tem seu arco de desenvolvimento focado em outra pessoa, mas, nos últimos minutos, entende que amar não precisa ser seu único traço de personalidade.

Cena do filme Barbie. A foto centraliza três “Ken’s”, e ao fundo é possível ver o céu azul e o chão, também azul, com alguns coadjuvantes lutando. Da direita para a esquerda, temos o ator Ncuti Gatwa. Ele veste roupas de ginástica típicas dos anos 60 na cor amarela, faixa no cabelo e está em posição de luta, com os braços levantados. Ao seu lado, temos Ryan Gosling. Ele veste apenas um colete preto com franjas nos ombros, luvas pretas, bandana da mesma cor, pochete também preta e um colar prata. Ele está também em posição de luta. Por último, o ator Kingsley Ben-Adir. Ele também veste roupas de ginástica típicas dos anos 60 e segura um mastro prata para defender-se.
“Para ser honesto, quando descobri que o patriarcado não tinha nada a ver com cavalos, perdi o interesse” (Foto: Warner Bros Pictures)

Com o que Greta chama de “Artificialidade Autêntica”, a película é ambientada na propositalmente surreal Barbielândia, o que distancia a diretora da saturada proposta de realismo fabricada pela computação gráfica. Esse, talvez, seja um dos fatores de maior destaque na obra: o mundo rosa é o lugar que toda mulher um dia já quis morar. Lá os campos são verdes, o céu é sempre azul e não existe assédio, desigualdade salarial, fome, guerras ou tristeza, porque é sempre o melhor dia de todos.

No entanto, a Casa dos Sonhos apresenta sua primeira rachadura no questionamento existencial mais simplório de todos, a morte. Em um despertar vagaroso guiado pelas falhas do dia-a-dia no mesmo estilo de O Show de Truman e Don’t Worry, Darling, Barbie aprofunda-se, sem querer, na pergunta da canção mais famosa do filme: What Was I Made For? E, se ninguém imaginava sair chorando da sala do cinema após ver imagens tão vibrantes durante a divulgação, Gerwig nos pegou de surpresa. 

Nesse caso, Glória (America Ferrera) foi o ponto de encontro para a universalização do “ser mulher”. Na tentativa de consolar Barbie, a personagem faz um monólogo sobre a dor feminina e lutas que, sem pensar, enfrentamos todos os dias. No fim, nos sentimos abraçadas por perceber que vivemos, todas juntas, experiências lindas, trágicas, tristes e acolhedoras – e poderíamos passar os dias sem ao menos notar que, ao lado, temos alguém capaz de entender exatamente o que estamos sentindo.

 Cena do filme Barbie. Na foto, temos a protagonista Margot Robbie em plano aberto. Ela usa um vestido de estampa vichy rosa claro e branco, salto alto também rosa e tem cabelos loiros longos com um laço rosa. Ela está de costas e acena para a Barbielândia, cidade do filme. É possível ver o mar no horizonte e diversas construções rosas e caricatas ao fundo.
A dublagem de Barbie é feita por Flávia Saddy, a voz que acompanhou a boneca desde os desenhos (Foto: Warner Bros Pictures)

E o que aconteceu depois que assistimos Barbie? A Mattel, de um lado, acreditou que o sucesso do filme se deu pela história da boneca mais famosa do mundo e irá expandir seu universo cinematográfico. Do outro, ficou um público realizado por sentir-se representado tão bem pelas sacadas de Greta dentro das vivências femininas. E nas outras sessões, tínhamos Oppenheimer, novo filme de Christopher Nolan. Independente de onde você está encaixado, era impossível sair triste após testemunhar duas obras que, com certeza, entraram para a história.

Além de piadas bem construídas, bonecas bonitas, muito rosa e músicas dançantes, Barbie não se prende em discursos empoderadores e no Girl Power liberal. Emocionante e identificável podem ser as palavras que mais definem a experiência feminina na sala de cinema, assim, o sentimento sufocante de nunca ser suficiente é abafado pela nostalgia de ser criança e pode sonhar em ser o que quiser quando crescer. 

 

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