Vitor Evangelista
Black Mirror caiu nas graças do público entregando episódios antológicos, recheados de uma tensão crescente e sempre com uma bomba caindo no colo de quem assista nos últimos momentos de cada capítulo. A produção construiu sua fama percorrendo caminhos seguros e sempre jogando dentro de sua zona de conforto. Mas haviam pontos fora da curva.
Antes disso, é preciso reconhecer que, antes da compra da Netflix, Black Mirror se saía bem em sua emissora de origem, a britânica Channel 4. Episódios memoráveis como Be Right Back e The Entire History of You mantinham um roteiro coeso e não precisavam de uma virada final para arrebatar seu espectador. Contemplativos, esses capítulos subiam seus créditos e ainda continuavam marcados na cabeça de quem acabou de conferi-los.
Então veio o boom, BM foi adquirido pela Netflix. Seu terceiro ano, embora promissor, é inconstante. Tramas frágeis e, principalmente, com roteiros que buscam o choque pelo choque. Não havia ali mais uma preocupação em desenvolver uma mitologia rica em estudo de personagens ou numa leitura da situação que vivemos (ou poderemos viver). O encaminhamento que o criador Charlie Brooker desenhou para a fusão com a rede de streaming murchou o que fazia de Black Mirrror um diferencial no mercado: sua impecável qualidade em contar histórias humanas, com a neblina tecnológica impedindo o espectador de enxergar isso na primeira camada.
É certo, também, que essa característica não foi descartada. O seriado apresentou sim episódios muito bons, na nova leva, e que fazem jus ao material de ‘origem’. O quarto ano trouxe três momentos ótimos para a antologia: USS Callister, Hang the DJ e Black Museum. Três fatias da temporada que fazem valer a empreitada. Agora, mais um ano se passou. E, abrindo mão de vários novos capítulos, Brooker decidiu elevar a experiência de seu público e lançou na Netflix o primeiro filme interativo (para adultos) da plataforma. Antes de Bandersnatch, o streaming disponibilizava alguns produtos de interação voltados ao público infantil (Minecraft – Story Mode).
Viajando de volta aos anos 80, Bandersnatch acompanha o programador Stefan Butler (Fionn Whitehead) em sua jornada de criar e vender um jogo de mesmo nome ao mercado da época. A trama se sustenta na paranoia do jovem que, na construção do jogo, se sente controlado por alguém. É interessante que o tal Bandersnatch que Stefan quer criar é baseado em um livro (fictício), onde o escritor também enlouqueceu no processo.
A direção fica a cargo de David Slade, que tem um bom currículo na TV e também dirigiu o terceiro Crepúsculo, Eclipse. O diretor tem um manejo irreverente ao querer contar sua história aqui. Bons close-ups esboçam a inquietação que o personagem central sofre. Sempre que o público está prestes a tomar uma decisão, Slade abre o plano da imagem e, quando os dez segundos de escolha começam, a trilha sonora sobe o volume. Enquanto a direção imprime bem o desconforto de tomar decisões que não lhe afetam, o roteiro de Charlie Brooker peca na falta de originalidade e não emociona nem consegue afligir quem assiste ao filme-evento.
Tratando-se de uma série antológica, Black Mirror falha em traçar um laço emocional entre personagens e público de forma orgânica ou crível. Nas investidas do choque sem a reflexão por trás, o seriado não estuda bem seus personagens e nem consegue arquitetar arcos narrativos em que eles se encaixem. Tudo soa estranho demais, de graça. Bandersnatch sofre mais que seus irmãos, exatamente por sua parte que o difere. Os momentos em que o espectador decide se Stefan come Sucrilhos ou Nescau, ou qual CD ouve, são enfraquecidos pela falta de empatia com o jovem retratado ali. E, para piorar, nas decisões maiores, envolvendo desdobramentos grandiosos para a história, permeia um ar de indiferença.
Charlie Brooker constrói sua narrativa sem ápices ou mesmo um clímax (os inúmeros finais do episódio não apagam a necessidade de um momento alto na história). Momentos menores se tornam enfadonhos e entediantes. O público, almejando a tal virada característica do seriado, não dá valor aos detalhes, a momentos íntimos que auxiliariam no fortalecimento do laço com as personagens em tela.
Quanto às escolhas postas em tela, a trama pode desapontar. Isso, dado o fato que existem escolhas-chave que devem ser selecionadas para a narrativa ir em frente. Quando algo não esperado acontece, o episódio retrocede ao ponto em que induz o público a escolher o que é obrigatório para a trama caminhar. Diminuindo a experiência de escolha livre, Bandersnatch surfa em metalinguagem. Stefan se vê numa encruzilhada e sente estar sendo controlado. O garoto não decide por si só e a narrativa prossegue por seus próprios meios. O público se vê na mesma situação.
Não é nada genial seguir por esse caminho, por ele ser o esperado. Esse é meu maior problema com Black Mirror: a falta de culhões para estudar seus temas, aprofundar conceitos, expandir horizontes e, em marca maior, sair de sua zona de conforto. Tudo isso no medo de não conseguir entregar o plot-twist que domesticou seus fãs. O episódio conversa sobre controle e falta de livre-arbítrio, mas preenche todos os pré-requisitos do que se esperaria ver numa produção com esse tema. Não há aqui necessidade, ou até mesmo vontade, de Brooker em transitar novas rodovias e discutir temas que saem do senso comum. Depressão e esquizofrenia são pinceladas, mas nunca discutidas.
Bandersnatch é uma inovação no meio, mas não foi a Netflix quem criou o conceito de interatividade nas mídias. Os chamados visual novels, jogos eletrônicos comuns no Japão, já prostravam seu público frente as escolhas para os diversos encaminhamentos da história. Os jogos de The Walking Dead, da Telltale Games, já exploraram o lance da interação de maneira extraordinária, também.
Esse filme evento da Netflix é interessante na concepção do seriado, sempre inovando e agradando o público. Porém, como experiência audiovisual, é incompleto. Diante de tantas opções e o controle de um ser maior envolvido, Bandersnatch é esquecível. Se você quiser conferir uma produção de 2018 que fala de tecnologia e assusta com viradas mirabolantes, pode optar por YOU, também na Netflix.
Muito boa a análise!