We are the music makers: a trilha sonora da era das máquinas

miau

Nilo Vieira

Não é novidade que o processo de isolamento pode render ótimos trabalhos artísticos; só membros do Pink Floyd, por exemplo, já lançaram ao menos três grandes tratados sobre o assunto. Todavia, na era contemporânea, não há vertente sonora que capture essas experiências solitárias de maneira mais ampla e criativa que a música eletrônica. Valendo do gancho de aniversários, trataremos de algumas das mais impactantes – criadas por personalidades reclusas ou em períodos de isolamento.

Paisagens dentro do quarto

aphex twin selected ambient works xtal richard

O primeiro e, de longe, o mais influente componente desta seleção é Selected Ambient Works 85-92. Este primeiro álbum do produtor britânico Richard D. James sob o nome Aphex Twin começou a ser desenvolvido quando ele tinha apenas 13 anos de idade, e já construía seus próprios hardwares de som. Anos mais tarde, aprimoraria suas tecnologias na universidade de engenharia de Cornwall, e esta faceta matemática permearia seu trabalho em quase todos os âmbitos possíveis: seu logotipo (mais tarde, “homenageado” no jogo Half Life), desenvolvido por Paul Nicholson, foi elaborado em cima de uma combinação precisa de ângulos e templates e suas canções também emprestariam nomes de termos técnicos ou dos softwares/synths utilizados no processo.

Mas nada disso importaria se as composições não fossem igualmente tão bem lapidadas. Em SAW 85-92, os preceitos de som ambiente estipulados pelo lendário Brian Eno ganham tons dançantes, em uma gama muito rica: temos a robótica “Ageispolis”, a relaxante “i”, a cáustica “Green Calx”, a sombria “Hedphelym”, a baladinha top “Pulsewidth” e a etérea abertura com “Xtal”, dentre 13 faixas cujas texturas se revelam mais ricas a cada audição, funcionando tanto separadas quanto em conjunto.

Richard D. James, no início dos anos 90, rodeado por suas tecnologias
Richard D. James, no início dos anos 90, rodeado por suas tecnologias

Ainda que a gravação em tapes não tenha permitido uma qualidade cristina ao mix, esta opção se mostra um diferencial ao demarcar ainda mais os timbres analógicos do álbum, que consegue capturar o espírito das raves noventistas ao mesmo passo em que oferece verves meditativas, próprias para estudo – o que renderia o termo IDM (intelligent dance music), criticado pelo próprio Richard como algo elitista e desrespeitoso.

Vinte e cinco anos depois de seu lançamento, a estreia do Aphex Twin permanece como um dos trabalhos mais influentes da música recente. Eleito pela FACT como o melhor álbum dos anos 90, o LP caiu nas graças de artistas como Thom Yorke (cujo Kid A, considerado por muitos como o maior disco dos anos 2000, não existiria sem Aphex Twin), John Frusciante, Daft Punk, Steve Reich, Philip Glass e até mesmo o patrono do brostep, Skrillex. Mas a fama não seduziu Richard, que permanece como um dos maiores eremitas modernos: raramente dá entrevistas, sua agenda de turnês é inconstante e, desde 1995, grande parte de suas fotos de divulgação (capas de disco inclusas) mostram seu rosto distorcido ou colocado de maneira bizarra em corpos alheios. Dentre os vários boatos e mistérios que o cercam, estão a compra de um tanque de guerra e uma casa que antes era um banco.

Amém
Amém

Em entrevista à Pitchfork em 2014, afirmou que construir estúdios era mais divertido que fazer música. Mesmo assim, não parece ter sido o suficiente para fazê-lo parar: após retornar com um disco de estúdio naquele mesmo ano, sua conta no Soundcloud disponibilizou mais de 200 faixas na rede e registros oficiais continuaram sendo colocados no mercado. E pelo visto, sua genialidade é genética, dado que seu filho, com míseros oito anos de idade, já faz sua própria música sem a ajuda do pai. A família real britânica que se cuide!

geogaddi

Uma década mais tarde, em 2002, os parceiros de gravadora (Warp Records) Boards of Canada lançariam seu magnum opus. Sucessor do elogiado Music Has the Right to Children (1998), Geogaddi é um exercício de expansão da música altamente naturalista do duo. Ainda que as batidas estejam ali, o que dita a ordem são as notas ecoantes e samples oscilantes de sintetizadores que, como as cores quentes da capa sugerem, passam a constante sensação de que o mundo ao nosso redor está dilatando sob a luz do Sol.

Para analisar os sons de Geogaddi, é interessante observar os aspectos gráficos do disco. A capa e o encarte interno são compostos de imagens caleidoscópicas de crianças e paisagens, quase uma releitura geométrica das imagens cotidianas típicas do cineasta avant-garde Jonas Mekas – a referência aqui não é gratuita: em ambos, a proposta contemplativa é exercida na potência máxima (vale também ressaltar que o nome da dupla vem da National Film Board of Canada), a ponto de causar desconforto para o espectador, seja pela repetição de passagens ou pelo aparente vazio existencial que essas obras podem evocar.

No entanto, diferente dos filmes intimistas de Mekas, Geogaddi oferece a essa observação profunda um lado sombrio. Além do tempo total do álbum ser propositalmente de 66 minutos e 6 segundos, samples vocais extraídos de um dos projetos musicais mais obscuros e impenetráveis de sempre, The Conet Project: Recordings of Shortwave Numbers Stations (1997), alternam espaço com falas de crianças criam mantras fantasmagóricos (vide “Sunshine Recorder” e seu incessante “a beautiful place”), em vozes com tom normal ou manipulado.

Somado a isso, a sugestão de ocultismo em números e formas – não à toa, uma das músicas se chama “The Devil is in the Details”, e outra “Music is Math” – é fortalecida pelas estruturas repetitivas e detalhistas – em “The Beach at Redpoint”, por exemplo, as notas iniciais de cordas são contrapostas por um chiado constante ao fundo e depois dividem lugar com percussões metalizadas e flautas tribais, e assim pinta-se uma paisagem belíssima, ainda que insólita. Até mesmo um crepúsculo pode ser claustrofóbico, afinal. É como se frames do colossal As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000), de Jonas Mekas, estivessem sendo decompostos por Bill Morrison em seu Decasia, lançado no mesmo ano de Geogaddi.

Essa abordagem jamais seria possível se os irmãos Michael Sandison e Marcus Eoin não fossem reclusos. Assim como Aphex Twin, os também britânicos quase não se pronunciam em público, além de não fazerem shows desde 2001 e não contarem com clipes oficiais em seu catálogo. Dessa forma, a comunicação entre o grupo e seu público se dá de maneira cifrada através da música, onde os ouvintes acatam – mesmo sem exigências formais – a missão de traduzir a mensagem, seja em vídeos fanmade ou em resenhas interpretativas. Quer relação mais empática e artística que essa na era das máquinas?

Fugere urbem

burial untrue lol

Ainda no Reino Unido, outro trabalho seminal de música eletrônica seria lançado em 2007: Untrue, o segundo LP do produtor William Bevan, mais conhecido por Burial. Talvez o título essencial do breve período de vida criativa do dubstep, o disco é caracterizado por uma atmosfera gélida tipicamente urbana, realçada especialmente pelas batidas metálicas e timbres lo-fi. Entre os samples, filmes de David Lynch, temas de games como Metal Gear Solid e Silent Hill 3 e pérolas obscuras do pop da década passada já denunciam a personalidade de Bevan: o típico sujeito isolado, silencioso, que gosta de coisas que ninguém gosta e passa o tempo todo em frente de telas (não é um boato, infelizmente).

Seu anonimato era tão extremo que a imprensa chegou a julgar que Burial fosse mais um pseudônimo de Richard D. James e, mesmo após William quebrar o silêncio com uma postagem no MySpace em 2008, não se deu ao luxo de ir receber um prêmio que havia ganho com Untrue. Já em 2015, jornalistas fizeram alvoroço sobre o produtor ter feito sua primeira apresentação ao vivo de surpresa – é claro que não era real.

A primeira (e ainda uma das raras) foto do rosto do produtor
A primeira (e ainda uma das raras) foto do rosto do produtor

Eleito o melhor disco dos anos 2000 pela FACT, Untrue é uma verdadeira ode aos habitantes de quartos bagunçados, escondidos e espalhados em grandes metrópoles cinzentas. Ainda que trechos pop ou ritmos mais acelerados deem as caras, a sensação que permeia é de sons compostos por quem vai em baladas “pra curtir a música” e acaba a noite encostado num canto, alternando o olhar entre o celular e as pessoas da pista. Dançante, mas para pessoas que não arriscam passinhos.

Nesse ponto, faz-se necessário relembrar o aspecto mais comentado do play: as alterações de pitch em vozes. Segundo o próprio Bevan, ele gostava de deixar a voz de um homem tão fina a ponto de soar feminina, e vice-versa. Isso não apenas se mostra pontual perante o debate das questões de gênero (afinal, o quão consolidados são esses limites? Realmente fazem diferença quanto a potência emocional de um vocal?), como também reforça o tom nebuloso da música: tudo parece tão embaçado que nem mesmo somos mais capazes de distinguir vozes.

Mas todas essas características seriam aperfeiçoadas cinco anos mais tarde, na real obra-prima de Burial. Com sobras o ep mais elogiado desta década, Kindred é constituído de pouco mais de trinta minutos, separados em apenas três faixas. Nelas, as progressões se dão de maneira lenta e inconstante, muitas vezes entrecortadas por chiados, em um dos registros mais hipnóticos de 2010 pra cá. Os timbres rústicos e a produção pouco lapidada não deixam dúvidas: este é o real do it yourself contemporâneo.

Completando o time e enfim saindo da terra da rainha, o aniversariante do dia, Person Pitch (2007). O trabalho mais conceituado de Panda Bear (Animal Collective) pode ser definido, sem exageros, como o melhor discípulo do clássico Pet Sounds (1966), dos Beach Boys. No entanto, diferente dos trocentos herdeiros do álbum, este passa longe de ser uma cópia carbono: o título por si só já mostra a diferença de pegada (o foco agora não são sons exóticos vindos de fontes inusitadas, e sim ideias e tons criadas por seres humanos reais), e o romantismo de Brian Wilson dá lugar ao carpe diem direto e espirituoso de Noah Lennox.

Gravado após a mudança do músico para Portugal, o disco é composto majoritariamente por colagens de samples de uma extensa coleção de vinis. A prensagem original em LP inclui uma lista de artistas que inspiraram o processo no inlay, o que pode ser tido como uma espécie de retomada do cratedigging de DJ Shadow e contemporâneos. Aliás, outra parte do encarte, agora do cd, também é crucial para a compreensão do produto final – trata-se desta foto aqui.

Embora aparentemente banal, a imagem da aparelhagem de Noah Lennox organizada ao redor de seu computador reflete muito bem a viagem que é Person Pitch: um rapaz dos EUA, agora em uma cidade ensolarada da Europa, cantando serelepe sobre fundos sonoros seletos sem sair do lugar. Essa trajetória mezzo onírica, mezzo terrena remete diretamente ao longa-metragem A Cor da Romã (1968), de Sergei Parajanov. Neste clássico cult, não há um único movimento de câmera, e a vida de um poeta é retratada somente através de alegorias imagéticas, de um refinamento estético que espanta até os dias de hoje. Há também de se pontuar a preferência de Panda Bear por escalas orientais e a divisão simétrica do tracklist, o que só reforça a ligação.

Mostrando que períodos de reclusão não precisam ser obrigatoriamente sombrios, Lennox destila otimismo ao longo das sete faixas – impossível não citar “Take Pills”, que prega que somos mais fortes se não dependermos de remédios. Entre loops que vão grudando lentamente e explosões repentinas, “Bros” é, sem dúvidas, a coluna dorsal do disco: se a inteligência dos Beach Boys estava em condensar arranjos grandiosos em pequenas peças pop, Panda Bear segue na contramão e alarga os detalhes o máximo que consegue (o final da faixa, com sons de fogos de artifício, não poderia ser mais apropriado). É escapista, ao mesmo passo em que é realista; “ser legal é ter coragem/ coragem de fazer o que é certo”, diz em “Comfy in Nautica”.

O álbum não apenas seria vital para a direção mais eletrônica e explosiva que o Animal Collective seguiria naquele mesmo ano com Strawberry Jam, como viraria referência para compositores do mundo indie – em entrevista ao Tidal, a cantora e multiinstrumentista Grimes o elencou como um álbum que mudou sua vida. Todavia, assim como os outros desta seleção, não demanda que seja um artista formado para compreendê-los; basta ter um par de fones e um computador ligado durante uma madrugada silenciosa.

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