Vitória Lopes Gomez
“Se ser mulher na era Vitoriana já era uma tarefa difícil, tornava-se ainda mais penosa para as que desafiavam o status quo. Um dos traços marcantes do período vitoriano é a luta pela emancipação das mulheres e pelo voto feminino”. É assim que Vitorianas Macabras, coletânea de contos de autoras de suspense e terror da era vitoriana, lembra de suas inspirações. Em uma época marcada pelo fantasmagórico e pelo mórbido, pela precariedade da qualidade de vida e por uma predileção pelo macabro, as escritoras representaram o “entusiasmo pelo progresso”, com contribuições marcantes para a época, desde a literatura até a luta pela emancipação feminina, inclusive com o movimento sufragista.
No livro, publicado pela editora Darkside, a organização e a tradução de Marcia Heloisa é peça chave para nos levar de volta aos assombros e às peculiaridades da Era Vitoriana. Em uma introdução, também dela, a apresentadora fornece o panorama necessário para contextualizar a época e nos lembra do porquê devemos exaltar as autoras, destaques em um período – e em um gênero literário – marcados pela presença masculina. Como ela justifica, o volume busca reparar uma injustiça histórica, dando visibilidade às mulheres que “desafiaram convenções, batalharam contra todo tipo de diversidade e combateram os mais arraigados preconceitos”. Então, Heloisa nos faz mergulhar na antologia de contos de Horror das treze escritoras escolhidas.
A Rainha Vitória e sua Era Vitoriana
Quem dá o nome a uma das eras mais famosas do meio cultural é a Rainha Vitória. A quinta da linha de sucessão, era improvável que a candidata a monarca de fato vestisse a coroa, mas seu tio, o Rei, apesar de ter tido filhos, nunca foi oficialmente casado e não possuía herdeiros legítimos. Assim, ela, que perdeu o pai quando ainda era bebê, assumiu o trono da Inglaterra aos 18 anos, rodeada de homens desconhecidos por ela e sem o devido preparo para seu novo posto. Antes, a mãe de Vitória até chegou a tentar prepará-la para ocupar o cargo, com uma criação rigorosa pautada pelo Sistema de Kensington, um conjunto de regras para educá-la. O que aconteceu, porém, foi que a Rainha permaneceu vigiada e isolada pela maior parte de sua vida.
Desamparada, após uma sucessão de governantes homens e com uma monarquia enfraquecida, a Rainha Vitória começou seu reinado em 1837. Rapidamente, ela se casou com o príncipe Albert, que morreu subitamente de febre tifóide não muitos anos depois. Ela, profundamente apaixonada e previamente marcada pelas perdas em sua vida, mergulhou no luto pelo resto de seus dias, levando a Inglaterra junto dela. Foi nessa época e contexto que o país viu sua curiosidade e predileção pelo macabro aflorar.
Desde a morte do marido, a Rainha passou a vestir preto o tempo todo e seguiu com seus rituais de luto. Vitória mantinha os funcionários do palácio agindo como se Albert ainda estivesse vivo, diariamente levando água e sua bengala ao antigo cômodo do príncipe, e mandava pintar e pendurar quadros com o retrato dele. Mas a atmosfera sinistra ia além das paredes do castelo: nas ruas da Inglaterra, a obsessão pela morte, o culto aos falecidos e a curiosidade pelo além tornava o país assombroso. Assim, apesar de por definição compreender somente os anos em que esteve no poder, a Era Vitoriana transpassou o período de reinado da Rainha, de 1837 a 1901, mas ficou marcado por seu hábitos e características destacáveis, que ressoam até hoje no imaginário popular.
A Era Vitoriana nas ruas da Inglaterra
Não bastasse sua monarca mergulhada em uma aura fantasmagórica própria, a população da Inglaterra teve outros incentivos para embarcar na sombria Era Vitoriana. Em uma onda de espiritualismo, os médiuns, cartomantes e pessoas que supostamente encarnavam mortos viram um cenário propício para prosperarem, inclusive dentro do palácio real. Nisso, os fenômenos paranormais também se juntaram à lista de interesses dos ingleses: gabinetes de curiosidade, com artefatos assombrados em exposição, demonstrações mesméricas, casas de crueldades, freak shows e sessões de espiritismo e reencarnação faziam sucesso no país, onde que os cidadãos alimentavam a curiosidade pelo bizarro.
As precárias condições de vida justificavam o fascínio inglês pela morte. Epidemias, acidentes, falta de assistência médica, péssimas condições sanitárias e de higiene contribuíram para que a expectativa média de vida de um homem não passasse dos 45 anos. Mulheres e crianças sequer chegavam a isso. O cenário era tão deplorável que o Grande Fedor do Rio Tâmisa virou um evento, com um dos rios mais famosos do país virando um esgoto a céu aberto – inclusive, em uma leva de crimes na época, até corpos decapitados chegaram a boiar por lá. A morte rondava a Inglaterra.
O corpo humano também era tópico de interesse dos ingleses da época. Nem as insalubres condições de higiene e vida impediram os cidadãos da Era Vitoriana de realizarem experimentos e atingirem avanços na ciência. O fascínio era tamanho que ladrões de covas e gangues que sequestravam pessoas para roubar órgãos se tornaram comuns, alguns até ganhando fama, como os London Burkers. Hospitais psiquiátricos – na época, chamados de hospícios – e cemitérios também se popularizaram.
Apesar das estranhezas que cativavam os vitorianos, a Era não foi só conservadorismo e repressão, mas um período propício para descobertas e progresso no campo da Ciência, da Literatura, das Artes e das reivindicações sociais. O movimento sufragista é um exemplo de pauta em alta na época, inclusive com autoras e outras personalidades conhecidas somando à luta. As características daqueles 74 anos de reinado também marcaram a produção literária, com o gênero do Horror, as influências góticas e a popularização dos penny dreadfuls, os contos e histórias marcadas pela violência e pelo aumento dos crimes, e 13 das importantes expoentes dessas influências foram homenageadas em Vitorianas Macabras.
“Este volume busca reparar uma injustiça histórica, trazendo para os leitores brasileiros um pouco da vida e obra de treze mulheres que prestaram uma contribuição extraordinária à literatura. Mulheres que desafiaram as convenções, batalharam contra todo tipo de diversidade e combateram os mais arraigados preconceitos”
As Vitorianas Macabras
Vitorianas Macabras faz jus ao seu nome e, com a devida contextualização, foca nelas: as mulheres da Era Vitoriana movidas pelo medo. Por mais que tenham sido negligenciadas no decorrer da história, as escritoras deixaram sua marca na Literatura de gênero da Era, em produções que serviram de inspiração e pairam sobre nosso imaginário da época até hoje. No livro, Marcia Heloisa organiza uma coletânea (antologia, como ela chama) de contos de cada autora.
São 13, de 13 escritoras diferentes. Entre líderes do movimento sufragista e donas de casa que só receberam seu reconhecimento muito tempo depois do que mereciam, cada uma se destaca com seu próprio estilo, tema, ritmo de escrita e narrativa. Ao final, o único elemento em comum entre as mulheres vitorianas é o Horror. E reforçando a proposta da obra, de lembrar as personalidades femininas que marcaram a Era Vitoriana, cabe aqui citar seus nomes, um por um.
Charlotte Riddell
Além de escritora de mais de 50 livros, foi proprietária e editora da St. James’s Magazine, importante revista literária da época. Riddell foi uma das poucas que conseguiu viver de seu trabalho como autora e ser reconhecida em vida. Na obra, seu conto A Porta Sinistra, de 1882, acompanha um rapaz recém-desempregado investigando o mistério de uma porta que não para fechada em uma mansão mal-assombrada.
Louisa Baldwin
Ao contrário da sua antecessora no livro, Louisa Baldwin veio de uma família ligada aos negócios do Rei, e seu casamento, assim como o de suas três irmãs, foram destaque na história dela. Pelo menos no que dizem as biografias, já que a autora escreveu diversos poemas, romances e uma coletânea de contos de horror. No livro, a obra escolhida para representá-la foi o conto O Mistério do Elevador, de 1895, um dos mais curtos e mais envolventes de toda a coletânea da Darkside.
Edith Nesbit
Além de ter escrito mais de 60 livros infantis, contos de horror, romances e poemas, foi co-fundadora de um movimento socialista londrino, precursor do Partido Trabalhista. Foi politicamente engajada, frequentando círculos sociais e literários da época, e tornou-se professora convidada da Escola de Economia e Ciência Política em Londres. Em Vitorianas Macabras, é homenageada com a inclusão de seu conto Mortos em Mármore, de 1887, que mistura o terror sobrenatural ao suspense psicológico.
Violet Hunt
Filha de personalidades famosas da pintura e da literatura da época, Violet Hunt cresceu em um universo artístico. Foi autora de romances e contos, membro da Liga Sufragista de Autoras e Clube Internacional de Escritores PEN, além de ter participado do movimento sufragista. Se manteve em atividade até morrer e, no livro, tem sua participação com o conto A Prece, de 1911, em que a protagonista revive um falecido e reforça o fascínio da Era Vitoriana pela morte e pelo que existe além.
Amelia B. Edwards
A lista de cargos de Amelia B. Edwards é longa: escritora, jornalista, pesquisadora e egiptologista. Ao contrário de outras autoras da antologia, que tiveram de conseguir reconhecimento por suas obras como forma de ganharem independência, o sucesso das obras de Edwards a incentivou a deixar a Inglaterra e partir em execuções, se dedicando a relatá-las em outras produções, além de contribuições ao estudo do Egito. Ela foi declaradamente feminista e, muito politizada, foi vice-presidente de uma sociedade sufragista. Amelia B. Edwards também é uma das ícones da história LGBTQIA+ inglesa: viveu por anos com sua companheira e as duas foram enterradas juntas, em um cemitério considerado patrimônio histórico LGBT no país. Na obra, participa com o conto O Coche Fantasma, de 1864.
Charlotte Bronte
O sobrenome de Charlotte é famoso o suficiente para dispensar grandes apresentações: a autora foi uma das irmãs Bronte, as três grandes escritoras da Era Vitoriana. Junto de Emily e Anne, financiaram a publicação de uma coletânea de poemas, com pseudônimos masculinos, e a partir daí, conseguiram publicar seus próprios trabalhos. A escrita de Charlotte, inclusive, foi elogiada pela Rainha Vitória. Em três páginas, seu conto Napoleão e o Espectro consegue ser cômico e sombrio, ao mesmo tempo.
Elizabeth Gaskell
Romancista, contista e biógrafa, teve trabalhos publicados e reconhecidos ainda em vida, como o romance Mary Barton, artigos e a biografia da família Bronte, por ser melhor amiga de Charlotte. Sua casa virou um museu dedicado a sua vida e obra, e, em Vitorianas Macabras, O Conto da Velha Ama, de 1852, aborda o terror psicológico com uma ama recordando acontecimentos sinistros de sua juventude em uma mansão assombrada.
Mary Elizabeth Brandon
Talvez a de maior reconhecimento literário na época, Mary Elizabeth Brandon publicou mais de 80 livros e um deles, O Segredo de Lady Audley (1862) se tornou best-seller. Com o sucesso, ela conquistou a devida fama e independência financeira para seguir com suas publicações. Posteriormente, a obra foi adaptada para o rádio, para o cinema e para os palcos, alavancando ainda mais o alcance de Brandon na sociedade vitoriana. No livro, seu conto de horror A Sombra da Morte, de 1879. abusa do terror psicológico.
Margareth Oliphant
Ao contrário do restante das personalidades da coletânea, Margareth Oliphant, autora de romances, contos, artigos, ensaios, biografias e críticas literárias, só dedicou-se a seu trabalho de escritora após a morte de seu marido, como uma forma de sustentar os filhos. Casou-se novamente, com um editor de uma prestigiada revista literária da época, e continuou produzindo sem descanso até sua morte. Segundo Vitorianas Macabras, “a crítica moderna afirma que, se pudesse trabalhar menos e criar mais, Margareth teria sido um dos bastiões da Literatura britânica”. No livro, seu conto A Janela da Biblioteca, de 1896, uma jovem de férias na casa de sua família na Escócia descobre um nefasto segredo e uma janela para o desconhecido.
Rhoda Broughton
Sobrinha de um grande escritor da época, Rhoda Broughton teve apoio do tio no início da carreira e publicou dois romances na sua prestigiada revista literária. A partir daí, caiu no gosto do público e se tornou uma autora popular no século XIX, com seu romances e contos inventivos e sensacionalista sobre personagens femininas que desafiavam o decoro vitoriana. A coletânea conta que sua popularidade foi tamanha que outros escritores famosos no período, como Oscar Wilde e Lewis Caroll, se sentiram intimidados por ela, e há boatos de que Margareth Oliphant a repudiava por sua ousadia nas histórias. Trabalhou incansavelmente até sua morte e, na antologia, aparece com o conto A verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade, de 1868.
H.D. Everett
Diferente das colegas com que divide as páginas de Vitorianas Macabras, H.D. Everett permaneceu um mistério por boa parte de sua vida. Começou a escrever somente após os 44 anos e publicou seus primeiros livros sob um pseudônimo masculino, o de Theo Douglas. Sua identidade só foi revelada em 1910, pouco mais de uma década antes de morrer, e caiu no esquecimento com o passar dos anos. Suas obras e sua escrita, porém, foram elogiadas por escritores famosos da Literatura de Horror, com suas histórias que mesclam terror e ficção científica, combinando temas vitorianos a toques modernos do início do século XX. Em A Maldição da Morta, de 1920, conto com que marca presença no livro, pode-se notar os elementos comuns da sua literatura em uma narrativa cheia de terror espiritual, com um viúvo assombrado por sua falecida mulher.
Vernon Lee
Vernon Lee fez tudo e desafiou tudo. Escritora, dramaturga e ensaísta, ela publicou mais de 50 livros, entre contos, romances, peças e ensaios, e se tornou notável por suas histórias de horror. Ela também ficou famosa por suas contribuições aos estudos de Filosofia e Estética, e por sua luta política – como uma ávida pacifista e antimilitarista, se opôs à Primeira Guerra Mundial e escreveu uma trilogia teatral de protesto. Ela também desafiou os costumes da sociedade vitoriana: lésbica, assumia e vivia seu relacionamentos às claras, tendo permanecido com sua companheira até a morte, e se vestia em trajes tipicamente masculinos em provocação. No livro, participa com Amor Dure, de 1887, um dos contos mais longos, envolventes e poéticos da coletânea, sobre um jovem historiador que se apaixona por uma jovem italiana morta há séculos.
“Somos herdeiros das transformações e contradições vitorianas, adotamos e aperfeiçoamos seus avanços científicos e tecnológicos, exaltamos suas descobertas, apreciamos suas expressões artísticas, reverenciamos suas figuras ilustres”
May Sinclair
A última, mas não menos importante, das macabras vitorianas lembradas na antologia de contos, May Sinclair foi romancista, contista, poeta, tradutora e crítica literária, com mais de 23 romances e dezenas de outras produções publicadas. Cedo na vida, ela teve de largar seus estudos para cuidar da mãe e dos irmãos, e se tornou autodidata. Ganhou destaque na Liga Sufragista das Autoras e também contribuiu com a psicanálise, em uma sociedade de pesquisa sobre fenômenos psíquicos e paranormais. Suas histórias de terror psicológico e tramas sobrenaturais foram chamativas e, no livro, entra com o conto Onde o fogo não se apaga, de 1923.