Ludmila Henrique
Existem infinitas histórias no interior da cinematografia, das mais doces e inocentes como o primeiro amor até os temores e a repulsa dos filmes de terror. Luca Guadagnino, cineasta renomado em contabilizar narrativas sobre o amadurecimento e suas vertentes – como abordado no filme Me Chame Pelo Seu Nome (2017) e na série We Are Who We Are (2020) – , retorna às telas com Até os Ossos, longa-metragem que une gêneros clássicos do Cinema, para conduzir o romance entre dois canibais marginalizados pela sociedade em busca de pertencimento.
Adaptando o romance de Camille DeAngelis, Bones And All segue a trajetória de Maren Yearly (Taylor Russell), jovem recém abandonada pelo pai após um incidente em uma festa do pijama. Frank (André Holland), desolado pelo resultado desse acontecimento e perdido sobre o que fazer, decide fugir, deixando a filha apenas com uma fita cassete, compondo gravações pertinentes sobre uma particularidade natural da garota. A jovem, diferente de outros indivíduos, dispõe da incessante necessidade de provar carne humana.
Ao se encontrar sozinha, ausente de respostas e lidando com seus instintos, Maren então percorre um caminho sinuoso em busca de outro vínculo familiar, como o de sua mãe Janelle (Chloe Sevigny). Em meio à nova realidade e euforia, ela esbarra com outras personalidades que guardam a mesma circunstância conflituosa, como o intrigante Lee (Timothée Chalamet), sujeito com o qual se identifica de imediato. Isso, não somente por compartilharem desse impulso canibal, mas também por ambos vivenciarem uma luta por identidade, tentando desesperadamente encontrar seu lugar no mundo.
Distante do verão italiano de Me Chame Pelo Seu Nome, o road movie explora o meio-oeste norte americano em meados da década de 1980. Compondo fotografias inteiramente interioranas, o retrato de Arseni Khachaturan divaga pela vegetação rochosa dos apalaches, interligando breves cidades daquela região, com suas mercadorias e eventos locais, sem a intensa agitação das grandes metrópoles. Enquanto Lee e Maren adentram na excursão em busca de Janelle, é visível o amadurecimento e comprometimento dos jovens ao longo da trama, além do crescimento afetivo entre eles.
A conexão entre os dois protagonistas é marcada, sobretudo, pela trilha sonora de Atticus Ross e Trent Reznor, na qual a musicalidade anuncia os avanços do relacionamento entre os dois conforme entra em cena. Mas notoriamente, a trama gore entre dois canibais que se apaixonaram não poderia ser bem arquitetada em tela, com a atenção e a delicadeza necessária, sem a atuação excepcional de atores que compreendessem a fundo esse cenário, algo que foi ministrado brilhantemente por Russell e Chalamet.
Lee é um arruaceiro, distante de seguir um sistema social e exercendo suas próprias leis para sobreviver. Um personagem quase amorfo, ele apropria-se de elementos de suas vítimas e os toma como seus, integrando-os em sua personalidade plural. Contrário a isso, em virtude de sua situação fugitiva, Maren contém um estilo desconfiado e observador, que não sabe quais pessoas são suscetíveis para se aproximar, tanto por preocupação pela sua segurança, quanto para poder ajudá-la em seu propósito. Apesar de constituírem particularidades distintas, os dois jovens à margem da sociedade partilham da mesma ansiedade de se encontrar no olhar de outra pessoa e de fazer parte de algo que foi retirado deles de alguma forma.
Marcando o horror e os ápices disformes do canibalismo em tela, o personagem de Mark Rylance, Sully, expele desde sua roupagem até os trejeitos tudo que há de mais esdrúxulo em todo o filme. Em gênese, Sully incorpora um tremor memorável durante sua aparição, enquadrando uma personalidade nauseante, complexa e cheia de camadas. Sendo, provavelmente, o “eater” mais velho encontrado por Maren, ele representa um modelo de como o canibalismo pode afligir uma pessoa a longo prazo. Até os Ossos mostra como a solidão é presente entre os antropófagos, levando cada indivíduo a viver da forma que dá, procurando preencher todos os vãos da solitude e desejando sistematicamente o vínculo com outras pessoas.
Guadagnino, diferente dos demais cineastas que já abordaram a antropofagia em seus filmes – como o desconcertante Holocausto Canibal (1980), dirigido por Ruggero Deodato, e o prestigiado Hannibal (2001), de Ridley Scott -, opta por capturar particularmente a intensidade da tentação que move os “comedores” a realizarem o ato, ao invés da selvageria. Obviamente, a visceralidade está presente no cenário, mas não é a única em cena. O diretor, em um olhar poético sobre a trama, por vezes afasta, com muita sensatez, a brutalidade da câmera, para que a violência não domine por completo o longa-metragem, ocasionando extremos ou desconversando quando a narrativa regressa novamente para o lado mais sensível e romântico do casal.
Até os Ossos é paraíso e Inferno na mesma proporção. Uma brincadeira imersiva entre os padrões clássicos, uma carta de amor para os amantes apaixonados e um balde de sangue para os adoradores de thrillers. Marcante do início ao fim, inteirando uma narrativa tanto desesperançada quanto acolhedora, o filme dança ao passo de uma só nota. Um memorial do arrebatamento da juventude e dos direcionamentos que nos levam a sermos quem somos, e as consequências disso.