Ana Laura Ferreira
É normal e esperado que obras de arte tenham um tema, uma linha de raciocínio ou, pelo menos, um porquê que interligue toda uma construção. Esse fio que conecta as histórias é ainda mais visível quando falamos sobre Música, afinal, ela é uma das formas mais democráticas de se expressar os sentimentos humanos, usando temas como amor, felicidade e tristeza de maneira recorrente. Mas, fugindo dos caminhos mais simples, Ashlyn chega com a pretensão de falar nada mais, nada menos do que sobre o tempo, fazendo de suas canções a mais bela e impactante linha cronológica.
O que você faria se pudesse deixar uma última mensagem a um amor que se perdeu ou a alguém que já não pode mais voltar? É mandando um recado para o seu passado que a cantora estadunidense Ashe busca construir o seu futuro. Seu caminho, que já vinha sendo muito bem preparado com EPs dignos de mais reconhecimento, ganhou novas perspectivas após o sucesso de Moral of the Story, em 2020, como trilha do filme Para Todos os Garotos: P.S. Ainda Amo Você. Entretanto, mesmo já conhecendo seu tom e estilo, ainda não estávamos preparados para encontrar canções tão íntimas.
É exatamente por esse motivo que o disco se torna especial: ele traz personalidade sem pretensão. Preenchida com diversas influências de estilos como as batidas um tanto cinquentistas de When I’m Older, ela não se preocupa em trazer uma sonoridade bem marcada, muito menos em nos dizer quem são suas referências, o que só torna o seu trabalho ainda mais original. Em uma época na qual o que mais se escuta são canções recicladas que se escondem atrás do pretexto da nostalgia, Ashlyn é um suspiro de criatividade.
Contudo, nada nunca é perfeito, e este álbum também não seria. Sua maior qualidade, a grande variação de ritmos, tons e sentimentos, acaba também sendo seu maior defeito. Isso porque, ao construir o disco, as faixas acabam atrapalhando umas às outras, criando uma progressão não muito agradável aos ouvidos. Pulando da ritmicamente animada I’m Fine para a dolorosa Love Is Not Enough, podemos perceber que, numa tentativa de adicionar tudo de melhor que tinha guardado na manga, Ashe acabou por criar um playlist e se perde no desenvolvimento que se espera de um disco.
Ainda assim, podemos ignorar esse detalhe e dizer para nós mesmos que essa foi uma bela metáfora para falar sobre como nossos sentimentos são instáveis e voláteis. Sendo isso verdade ou não, é certo que a cola de unir suas faixas é a sinceridade do eu-lírico musical que, muito mais maduro do que costumamos escutar no pop mainstream, se permite sentir a fundo tudo o que acontece à sua volta. Quase como uma sessão de terapia, podemos acessar as partes mais pessoais da cantora, de forma que poucos teriam coragem de permitir.
Esse amadurecimento, que cresce no decorrer das faixas, é exaltado na quase profética Me Without You. Valorizando instrumentos clássicos como violinos e cellos – prática que ela adota em várias canções -, Ashe nos dá um alto e claro recado: o amor é uma dádiva, incrivelmente maravilhosa, mas não basta por si. Desse modo, quando canta que está sim muito bem sozinha, afinal o mundo não gira em torno de uma única pessoa, ela liberta a si mesma e a nós, tudo isso em uma narrativa ao melhor estilo carpe diem.
A progressão de Ashlyn começa a se estabilizar a partir do meio do disco, ficando cada vez mais imersiva. A voz suave e marcante da cantora nos leva entre o aconchego de Taylor e a angústia de Always, nas quais podemos sentir na pele a sua dor. Mas nenhuma poderia ser mais marcante do que a carta de amor e despedida que Ashe escreve para seu irmão em Ryne’s Song. A música, que simplesmente por suas batidas já é capaz de emocionar, toma outras proporções depois do segundo episódio da série de vídeos que acompanharam o lançamento do disco.
Caminhando por diversas formas de amor, somos embalados entre o romantismo e a fraternidade, abrindo possibilidades infinitas de sentimentos. Essa mistura abrangente faz com que nos identifiquemos cada vez mais com a narrativa, uma vez que, pelo menos, uma das 14 faixas do álbum irão se encaixar com sua realidade, mesmo que não literalmente. Ao nos entregarmos às sensações dispostas pelo disco, Ashe dá a possibilidade de a sentirmos por meio de nossos ouvidos.
E, falando de toda a personalidade da coletânea, a cantora nos permitiu, primeiramente, tirar nossas próprias conclusões para, então, explicar o que desejava transmitir com cada canção. Potencializando sua narrativa, o álbum passa a ter duas versões, duas perspectivas e duas interpretações, ambas igualmente poderosas. E talvez seja por isso que, na única vez em que levanta sua voz, sentimos nosso coração sangrar junto ao dela, entoando: “Não quero que você vá, mas vou ficar bem/E eu vou te amar/Uma última vez, pela última vez”.
Mas é no momento em que estamos mais envolvidos que uma repetição indesejada quebra o ritmo de nossas emoções. Moral of the Story é a música que dá base ao álbum por sua importância e também pela narrativa, que nos permite encaixar os quebra-cabeças que constroem Ashlyn. Porém, ao ser repetida em sua faixa bônus, na parceria com Niall Horan, ela acaba diminuindo seu impacto. Uma única vez bastaria para demarcar seu lugar de direito no disco. Além do mais, caso apenas o dueto estivesse presente, ainda ajudaria a construir uma progressão, já que a primeira canção do álbum também é uma parceria.
Ao iniciar e encerrar com uma pitada de vocais masculinos no delicado caminho da voz de Ashe, poderíamos ter uma camada a mais de ingredientes e tons. Não que isso faça falta pois, muito pelo contrário, é a suavidade da cantora que tanto nos prende na coletânea. Porém, ao dar certa relevância para suas parcerias, o álbum seria capaz de ter uma construção mais sólida, e talvez até resolvesse a questão de se assemelhar a uma playlist.
Contudo, mais do que a preocupação de entregar uma obra com grande valor sonoro, a cantora também toma cuidado para que seus complementos visuais sejam tão magníficos quanto. Dando destaque para o clipe de Till Forever Falls Apart, ao lado de FINNEAS, a música sinestésica ganha ainda mais vida e cores, se transformando na melhor definição possível de arte. Mantendo o controle e a personalidade em todos os aspectos de sua produção, Ashe constrói um trabalho coeso e completo.
O single, que abre o disco, é uma representação sonora de toda a coletânea, uma vez que o amor incontrolável, inconsequente, e até mesmo um pouco sufocante, ali descrito é uma bela entrada que equilibra a relação tempo e amor de forma sutil, mas ainda poderosa. O dueto resgata o romantismo renascentista sem deixá-lo datado, construindo suas camadas, aos moldes de Romeu e Julieta, e materializa o que, muitas vezes, não conseguimos colocar em palavras. A música é sim exagerada e excessiva, mas não seria o amor exatamente isso?
Retornando sempre para a questão cronológica e a forma com que lidamos com isso, Ashlyn se preocupa em olhar para o passado a fim de se permitir sentir o futuro. Como uma bela forma de se despedir e colocar pontos finais em suas histórias, o álbum é também um convite para olharmos para nós mesmos e buscarmos fazer o mesmo. Ele não se preocupa em cutucar feridas antigas, mas em refletir sobre elas para que tais dores possam se curar para sempre.
E, por mais que pudéssemos citar inúmeros adjetivos para caracterizá-lo, nada poderia definir melhor o disco do que honestidade. A coragem necessária para abrir sua pessoalidade de forma tão sincera é o que mais encanta na obra de Ashe. Sem medo ou pretensão de conquistar os primeiros lugares da Billboard – o que seria bem-vindo -, a cantora apenas espera que tenhamos gentileza ao escutar sua história.