Enrico Souto
“Trabalhe duro, e todos os seus sonhos se realizarão”. Esse é um tipo de fala muito familiar para nós, que vivemos imersos em um sociedade capitalista que preza por liberdade acima de tudo – inclusive, de nossa própria humanidade. E, afinal, se mesmo Bong Joon-Ho se surpreendeu em como pessoas do mundo inteiro se identificaram com o seu (mais localizado possível) retrato do capitalismo tardio sul-coreano, nossas vivências dentro desse sistema começam a se costurar, transcendendo territórios e aproximando-se de uma experiência universal. Entretanto, essa frase em específico é retirada de uma propaganda de rua do governo chinês. E a China não é capitalista.
A atual conjuntura econômica chinesa é complexa e um fenômeno único na história. Vivendo hoje um “socialismo de mercado”, essa alternativa ao socialismo tradicional surge quando a China, para evitar sofrer boicotes, embargos e barrar seu desenvolvimento produtivo, se viu na necessidade de fundir-se à lógica mundial de comércio capitalista, em concomitante à outras formas coletivas de propriedade. Contudo, o que parecia uma relação mutualística logo revela-se um violento parasitismo, que passa a contaminar cada aspecto de sua sociedade. E, à vista disso, os efeitos desse fenômeno são percebidos com muita sensibilidade por Jessica Kingdon em Ascension, sua estreia como diretora de longa-metragens, que consta entre os indicados a Melhor Documentário do Oscar 2022.
O filme gira em torno da doutrina do “sonho chinês” – que pouco se conecta essencialmente com o que conhecemos como “sonho americano”. Esse conceito foi apresentado por Xi Jinping, presidente do país, em 2012 e, desde então, tem sido posto como projeto político nacional. Baseando-se em condutas da China Antiga, seu maior objetivo é finalmente expurgar os traumas do país – com um longo passado de colonização e dominação externa –, superar suas crises, ultrapassar a hegemonia capitalista e estabelecer-se como a maior potência econômica e tecnológica da civilização moderna.
Ao contrário dos fundamentos de liberdade e crescimento individual pregados no ocidente, o sonho chinês, além de basear-se em um forte sentimento nacionalista e em rígidas normas sociais, coloca-se como um processo coletivo em seu cerne. “O sonho chinês é, acima de tudo, o sonho do povo. Nós devemos realizá-lo dependendo proximamente das pessoas”, são as palavras de Xi Jinping. Porém, a obra de Kingdon demonstra como, conforme o país se entrelaçou com a economia mundial, a busca pelo “rejuvenescimento da nação chinesa” confirma-se corrompida. De fábrica do mundo a sociedade de consumo, a estrutura socioeconômica inerentemente contraditória da China faz com que os cenários expostos pelo longa sejam assustadoramente reconhecíveis a nós.
Apesar da contextualização geral feita aqui, não é necessária nenhuma dessas informações para absorver a mensagem de Ascensão – como foi traduzido para cá. Diferente do que pode ter parecido até agora, o documentário não tem cunho teórico, muito menos informativo. A partir de uma estética limpa e minimalista, Kingdon dispensa explicações metódicas e narrações expositivas, decidindo focar somente na observação silenciosa das pessoas e de como aquelas condições afetam tanto sua rotina quanto sua relação com os outros e com sua própria subjetividade.
Jessica Kingdon já havia explorado as circunstâncias humanitárias da China no premiado documentário de curta-metragem Commodity City, que examina a vida de comerciantes do Mercado de Yuwi, mas decide expandir seus horizontes e investigar um panorama mais amplo. De descendência judaica e chinesa, a cineasta americana, sem nunca necessitar de verbalizações, não esconde o quão pessoais estes registros são para ela. Seu primeiro longa é nomeado a partir de um poema do seu próprio avô, Zheng Ze, escrito no ápice do Século da humilhação, em 1912 – um período de grande crise na história da China, logo antes da Primeira Guerra Mundial. Kingdon, então, se apossa das inquietudes de seu avô e ressignifica aqueles versos para tentar compreender a realidade de hoje.
“Minha espada em mãos, eu ascendo até a torre.
Eu olho para longe, esperando aliviar minhas aflições.
A torre é alta demais para escalar.
Em vez disso, meus problemas só aumentam.”
Após esse enxerto, logo nos transportamos para dentro do sensível olhar de Kingdon. Acompanhamos uma comoção em um centro comercial chinês, onde os recrutadores das fábricas, com seus megafones, gritam a plenos pulmões ofertas de trabalho à multidão aflita. Os direitos mais básicos, como um ambiente ventilado ou cadeiras para se sentar, são anunciados como benefícios exclusivos e imperdíveis, enquanto a falta de rigor sanitário é considerada um atrativo para uma população que não consegue acesso sequer a exames médicos. Tudo isso por um salário pífio e irrisório, o que não impede que as ruas continuem abarrotadas.
Nesse início, a câmera posiciona-se afastada, separada daquele corpo social e fluxo urbano. A perspectiva vêm de cima e exprime-se através de um olhar invasivo, que se embrenha sobre o cotidiano dessas pessoas sem que elas nem percebam. Mesmo com o distanciamento, a sensação é de abjeção, como se o simples ato de observar fosse rude ou até imoral. Com isso, Kingdon – que também assina a cinematografia – assume o mesmo lugar de nós, espectadores ocidentais: o de estrangeira. Ainda que seja parte de sua ancestralidade, a cineasta entende sua posição como leiga e se prontifica a mergulhar no âmago da humanidade daquele povo.
E, então, ao invés do que a introdução incita, somos levados a uma jornada interna e confidente a esse universo lúgubre. Cruzamos por diversos fragmentos da vida chinesa e, toda vez que pulamos de um cenário a outro, essa consciência de uma aproximação comedida volta a aparecer, dando ao filme um caráter lúdico de curiosidade e constante descoberta, sempre acompanhado de um incômodo frio na espinha. A fotografia é hipnotizante, utilizando-se do contraste entre enquadramentos abertos e fechados para criar uma corrente surreal de imagens. Ascension não precisa dizer nada, não só porque toda a sua carga de significado se apresenta dentro da sua rica linguagem cinematográfica, mas também pois sua narrativa depende de uma bagagem de signos que somente a enunciação jamais abarcaria.
Assim sendo, os trabalhadores das fábricas chinesas são os primeiros contingentes a serem abordados. Se a promessa de urbanização e modernização chinesa foi cumprida, isso não impediu que o mercado de exportação do país continuasse explorando a população local mais vulnerável, a partir de uma mão-de-obra barata e sucateada, implementada em condições insalubres e indignas. Presenciamos as trabalhadoras debruçadas sobre diferentes linhas de montagem, ocupando funções automatizadas, alheios do processo de formação daqueles produtos e, consequentemente, do valor legítimo de seu trabalho – ao mesmo tempo que nunca verão os frutos dessa labuta.
É desse modo que os paradoxos inerentes ao socialismo chinês tomam forma na nossa frente. Aliando-se à globalização, no esforço por alçar autonomia política e econômica, ironicamente a China se vê mais uma vez refém do imperialismo ocidental. Da produção de camisetas que estampam o slogan do governo de Trump à grotescamente meticulosa fabricação de bonecas sexuais: todos produtos que serão exportados e consumidos por homens de uma elite ocidental branca, e esculpidos por mulheres da classe operária chinesa em circunstâncias impróprias e perigosas. Fatalmente, espelha-se ali as convenções sistemáticas do capitalismo
Ascension também mostra como esse modelo de produção alienada é conduzida para outras dimensões sociais. Cursos de preparação profissional formam-se sobre um molde praticamente militarizado, baseado em hierarquias severas e sem espaço para debate e pensamento crítico. Em um treinamento de mordomos, por exemplo, eles são ensinados a manter sempre a postura de submissão: “Nossos clientes são principalmente pessoas ricas, que tendem a fazer o que bem entenderem e a depositar seu mau-humor em vocês. E vocês, como membros da indústria de serviço, precisam agir profissionalmente”, é o que aponta a instrutora.
São nesses momentos, quando Kingdon aprofunda-se na contraposição entre os trabalhadores e a aristocracia chinesa – cegamente obcecada pela cultura europeia –, que o documentário ganha um tom quase tragicômico. A partir de sua segunda metade, vemos as implicações da tal busca por desenvolvimento tecnológico e a transição do país de uma nação industrial para mais uma economia de atenção no auge do capitalismo selvagem. A ideia de que, na era da internet, ou você influencia ou é influenciado, é completamente abraçada por uma nova classe empreendedora que reduz tudo à mercadoria. Qualquer conhecimento que não possa ser monetizado torna-se obsoleto, enquanto a concepção do sonho chinês é deturpada e transformada em um discurso meritocrático vazio de ascensão e ganho individual.
A trilha sonora de Dan Deacon, ainda que excessivamente eclética – ora firmada em uma sonoridade rumorosa, ora acústica, regrada por instrumentos de corda –, cumpre seu papel em denotar a discrepância absurda entre contextos tão fisicamente próximos. Quando os sintetizadores futuristas e sintéticos do compositor são sobrepostos aos ruídos caóticos e indistintos de uma festa de formatura de um grupo de estudantes de classe-média, procurando sobre aquele parque aquático algum tipo de validação e recompensa imediata, crentes de que com empenho eles conquistarão tudo que desejarem, prova-se ainda mais artificial a construção dessas relações – superficiais e alheias da realidade.
Indo além do seu formidável comentário político, Jessica Kingdon entrega uma brilhante experiência sensorial. Mostrando que fazer um bom documentário não depende apenas de um extenso acervo de informação, a diretora usa todos os elementos da linguagem cinematográfica ao seu favor, instigando nossos sentidos e nos transferindo para dentro desse cenário destrutivo da forma mais palpável que uma obra audiovisual chega. No Oscar, em que foi indicado para Melhor Documentário, Ascension acompanha uma leva de documentários sobre a questão da China que deram as caras em anos anteriores, como o curta Do Not Split e Indústria Americana, que ganhou na mesma categoria em 2020. Porém, para esse ano, sua chance de vitória é pouca, dado que saiu de mãos vazias na maioria das grandes premiações em que foi indicado, enquanto compete aqui com gigantes como Flee e Summer of Soul.
Por meio de um estudo íntimo e refinado, Ascension revela que ecos da ideologia americana contaminaram os quatro cantos da China. Talvez o “sonho chinês” já não pareça tão distante dos preceitos do “sonho americano”. No fim das contas, é a mesma falácia de que, com persistência e força de vontade, tudo é possível. Ideia essa calcada sobre o sangue de trabalhadores e de uma falsa esperança que legitima opressões, à medida que edificada minuciosamente para esterilizar qualquer fagulha de reação e isentar os verdadeiros responsáveis por tamanhas atrocidades. E é assim que, ao testemunhar paralelos entre a decadente realidade chinesa e a nossa, sob o olhar preciso de Jessica Kingdon, não existe outra conclusão possível: reconciliações são impossíveis com a farsa do capitalismo.