Yasmin Moscoski
A cantora e compositora Maria do Céu abre seu quinto álbum de estúdio, APKÁ! (2019), com uma saudação melódica e acolhedora. O “Olá, como vai você?” de Off (Sad Siri) é um verdadeiro convite para o mergulho interior da artista. Vindo de Tropix (2016), Céu nos introduz à sua nova obra de forma tênue, mesclando sintetizadores e baterias contadas como em um reencontro. Com o repertório versátil que transita com harmonia entre os gêneros, o álbum tem três indicações no Grammy Latino 2020: Melhor Canção em Língua Portuguesa, Melhor Álbum de Engenharia de Gravação e Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa.
Lançado em setembro de 2019, APKÁ! leva esse nome por conta do filho pequeno da artista, Antonino, que repetia a palavra incomum enquanto aprendia a falar. Essa espontaneidade e afeto da infância não fica só no título do trabalho, mas ao longo da produção, sempre apresentando amores e desamores e suas diversas ressignificações no contexto atual. A similaridade sonora entre APKÁ! e Tropix não é por acaso e podemos perceber nas primeiras faixas. A produção ficou por conta do tecladista francês Hervé Salters e pelo baterista Pupillo – mesmos produtores do penúltimo álbum – e contou com músicos de longa data como Lucas Martins no baixo e Pedro Sá na guitarra.
Céu consolida sua força em APKÁ! como cantora e compositora ao pensar as composições e respeitar a própria extensão vocal. Estimulada por Pupillo, ex-Nação Zumbi, baterista, produtor e companheiro de vida, ela se propõe a exercitar a voz “para fora”. O resultado é divertido, deixa o nosso coração quentinho e remexe o quadril.
Após a introdução por Off (Sad Siri), a artista nos convida para uma balada noturna e dançante com Coreto. O começo sintetizado, quase como um nativo digital, se destaca a típica voz suave seguida de batidas estimulantes declamando um amor não recíproco – e que provavelmente morreu. O som, pensado para rádio, leva como inspiração o soul, música de salão e cumpre com o que propõe: mexer o esqueleto da galera.
Em entrevista a Pedro Henrique Pinheiro do site Tenho Mais Disco que Amigos, a cantora explica que tinha a intenção de trabalhar com assuntos que envolvessem o tempo polarizado em que vivemos, e que APKÁ! resultou inconscientemente em uma junção de passado, presente e futuro: “Foi um disco feito um dia após o outro, sem uma direção certa como aconteceu com o Tropix. Eu não tinha um conceito na minha cabeça no qual eu almejava chegar. Fui trazendo os elementos que estava a fim de trazer. Quando cheguei no final, eu concordo com você que é um disco que faz uma ponte do meu passado para o meu presente e para o meu futuro. Eu não tenho a menor ideia de como fiz isso (risos).”
Outra faixa que chama a atenção é Forçar o Verão, um grito claro sobre a atual situação nas terras tupiniquins. Com sonoridade back to 80’s, somos expostos a versos cirúrgicos e necessários. A artista tem como um dos propósitos fazermos pensar enquanto dançamos, e consegue fazer isso com sucesso ao longo do disco.
Uma nuvem se aproxima do cartão postal
Feito um convidado que ninguém quer receber
Mas quando ele vem/Não quer mais sair
Num sorriso debochado estaciona ali. […]E o tempo fechou
E ninguém viu
Derrubando a rima
Fez-se então frio no Brasil
Pare de forçar o verão
Aqui, o verão tem sentido metafórico e serve para nos fazer pensar sobre a situação política e social na mão de um notório governo autoritário. Por coincidência – ou não – o hit é lançado no ano em que o chefe do executivo brasileiro retira o horário de verão depois de 88 anos.
Corpocontinente, canção melódica, expressa as divergências entre corpos que em algum momento foram um só. Na produção audiovisual, o diretor Rodrigo Saavedra brinca com a ambiguidade de sentidos causados pela letra e clipe, deixando a encargo do público a provável interpretação: uma relação amorosa entre duas pessoas ou uma relação íntima do homem com a terra. Seja qual for a interpretação, a saudade se fará presente.
O videoclipe retrata um cenário futurista e apocalíptico com viagens por substâncias psicoativas onde Céu representa uma força da natureza. A produção é extremamente brasileira e tropicalista ao mesmo tempo que consegue ser mundial e contemporânea, o que serve para confirmar o jeito Céu de ser eclética.
APKÁ! traz mais do que o brilho de Céu. O disco também carrega um time de peso que cria produções excelentes. Uma delas é Pardo, que dá Céu a chance de mostrar sua interpretação espetacular, com ginga e medida. A composição foi encomendada pela própria ao tropicalista Caetano Veloso. Além disso, na sua execução, tem como vocais, nada mais nada menos que Seu Jorge.
Uso e abuso de beats eletrônicos são uma marca consolidada neste trabalho. Make Sure Your Head Is Above é uma balada em inglês com beats eletrônicos composta por Dinho Almeida. Em entrevista ao site NOIZE, Céu fala sobre a sua admiração pelo guitarrista e vocal do Boogarins e sobre a encomenda da música ao próprio:
“Eu tenho uma admiração muito grande pelo trabalho dele. Acho a banda dele com uma personalidade muito interessante, fechada. Acho que eles fazem um trabalho incrível, o show deles é gigante, eu sou muito fã do show deles, do Boogarins. O Dinho, pra mim, além de um puta guitarrista e um puta cantor, eu acho ele um puta compositor.”
Ainda com beats eletrônicos em nosso ouvidos, somos introduzidos à última faixa. Eye Contact é uma parceria sedutora e envolvente com o duo paulistano Tropkillaz, conhecidos por trabalhos como Bola Rebola e Quem Mandou Chamar.
Com mais de 15 anos de carreira, Maria do Céu nos entrega seu sexto álbum com carinho e atenção. Os shows são esteticamente pensados para enriquecer a vivência de cada pessoa presente ali. Como se fosse um filho, a cantora pensa e reproduz as faixas com fluidez desejável a muitos. Devemos lembrar que o repertório versátil de APKÁ!, quase como uma caixinha de surpresa, é marca registrada da cantora, e que por isso não devemos categorizar a direção que Céu nos leva por seus trabalhos, já que sempre é uma amostra de um mergulho interior, sendo esse singular.