Vitor Evangelista
Não tinha outro jeito. Quando Shea Couleé entrou no ateliê, a Coroa, o cetro e o quadro do Hall da Fama já estavam com nome e sobrenome estampados. Quem chegasse na competição depois já não era importante, ou sequer relevante. 5 edições à dentro dessa corrida (quatro, se desconsiderarmos o terrível All Stars 1), o jogo já não tem mais tantas nuances. Ao passo que as nove queens restantes retornavam para a disputa do título e do cheque, Shea não tinha com o que se preocupar. Oito episódios depois, a conta veio.
Muito mais uma manobra de redenção, por vezes autoinfligida, a escolha de RuPaul parece levar em conta o passado e o prestígio em detrimento do agora. Assim, a questão que fica é a seguinte: essa competição virou um acerto de contas ao invés de uma congratulação e reconhecimento por mérito? A resposta definitiva não existe, Shea Couleé não venceu por pena ou migalhas, mas a narrativa dessa 5ª temporada abre margem para discussões mais profundas quanto ao papel da corrida secundária pela coroa. Está na hora do All Stars acabar.
Pelo menos em sua configuração atual. Quando, em 2012, foi inaugurada essa loucura de rainhas perdedoras retornando para uma segunda chance, tudo funcionava no papel. É certo que a primeira edição foi um tremendo show de horrores, tanto por falta de visão dos produtores, quanto pela ideia de competir em duplas. Quando RuPaul tomou chá de bom senso e formulou o ‘Dublar pelo Legado’, junto do sistema de eliminação dos batons, tudo para o All Stars 2, aí que a coisa floresceu. Importante ressaltar que o salto entre temporadas foi de 4 anos, houve respiro, houve preparo e, o imprescindível aqui, houveram queens competentes e que vivem à altura do nome do programa. O título de Grande Estrela é mais raro do que se imagina, não é qualquer drag queen selecionada para as temporadas regulares que merece um lugar aqui, devemos separar o joio do trigo.
Enquanto as temporadas normais de Drag Race seguem um fluxo sem mudanças, a série paralela gosta de inventar moda. O All Stars 2, de 2016, correu até que bem. Com exceção dos consecutivos botes salva-vidas jogados à Roxxxy Andrews, a temporada que coroou Alaska segue sendo a melhor de toda a franquia do reality show, o conjunto da obra, as dublagens, looks, eliminações, desafios, tudo soa fresco e inovador. Aquela reunião de Grandes Estrelas estabeleceu um nível de excelência difícil de alcançar, tanto é que mantém o status de suprassumo quatro anos e sete temporadas depois.
Em 2018, o terceiro All Stars ainda contava com um elenco estelar, batalhas extraordinárias e uma gama de talento explorado à fundo. O tiro no pé veio quando se formou o Conselho das Rainhas. O grupo de queens eliminadas decidindo quem dublaria pela Coroa não apenas soou mesquinho como uma vingança barata, mas também tirou de Shangela seu momento de consagração. E então, ano passado, o vexame da coroação dupla de Trinity The Tuck e Monét X Change no All Stars 4 transformou tudo em baderna.
O empate pelo lugar no Hall da Fama foi a última gota de veneno que o programa ingeriu. A decisão abre precedentes para qualquer desdobramento daqui pra frente, além de ser extremamente gratuita, numa temporada que em momento algum exigiu um prêmio duplo. Em 2020, duas drag queens chegaram ao último episódio com garra e narrativa que muito se beneficiariam de uma vitória em conjunto, algo que não deve acontecer tão cedo devido ao tiro no escuro de 2019. Shea Couleé, excelente em todas as frontes, ostentou visuais de outro mundo, usou de sua personalidade cativante e uma história de acerto de contas, que rondava seu retorno à franquia, para construir sua ascensão ao topo.
Junto dela, Jujubee é outra sublime aresta da temporada. Competindo pela terceira vez, depois de chegar na Final na 2ª temporada e no primeiro All Stars, ela chegou repetindo o mantra de ‘a terceira vez é o charme’, como Shangela e Manila Luzon fizeram no passado. A arapuca de atrair competidoras da velha guarda para temporadas recentes se transforma numa prisão de expectativas. Olhando em retrospecto o histórico do reality, quem sai coroada do ateliê são queens modernas e frescas aos olhos do público.
As regras da franquia mudaram no All Stars 5. O ‘Dublar pelo Legado’ foi abolido, agora apenas uma rainha seria a Melhor da Semana e ela dublaria contra uma Lipsync Assassin. Não uma matadora de drag queens, nada disso, mas sim uma competidora do passado do reality que, como o título sugere, seja ótima dublando. Além disso, em 2020 foi estabelecida a Rumocracia, onde todas as drags têm o poder de votar com os batons. Se a Assassin vencer a batalha, quem decide a eliminada são as rainhas que votaram.
Essa virada na dinâmica do jogo pareceu refrescante, mas só até a página dois (ou o episódio seguinte). O esquema antigo de vitórias duplas a cada semana fomentava a competição, indicava as favoritas ao prêmio e dava a chance das artistas dublarem pelo legado, ganhar a gorjeta e ainda carregavam o peso de, por si só, mandarem alguém embora. A luta era real, havia empenho e garra nas performances, além da diversão de acompanhar os duelos. Quando a Lipsync Assassin deu as caras, o efeito contrário surtiu.
Sem nada a ganhar ou perder, as Assassinas escolhidas não entregaram o esperado. Yvie Oddly, Alyssa Edwards, Roxxxy Andrews, Monét X Change e Kennedy Davenport, todas figuras consolidadas na mitologia de Drag Race, retornaram ao palco para dublar sem motivos. Foram performances mixurucas, aguadas. Sem contar a presença de Morgan McMichaels e Vanessa Vanjie Mateo sob o título de Assassin, quando disso não têm nada.
O programa abriu mão de resgatar artistas emblemáticas dublando como Dida Ritz, Trinity K. Bonet e Coco Montrese, para, mais uma vez, colocar o holofote em personalidades mais recentes para o público e a internet. Lado a isso, a má distribuição de vitórias entre as competidoras tornou todo o sistema de eliminação menos complicado (das 10 queens, apenas 4 ganharam desafios). Ficou mais simples mandar embora meninas que não abocanharam vitórias mas que, no sistema antigo, seriam o Top 2 da Semana facilmente.
Já é de conhecimento geral que Drag Race usa de sua plataforma para criar peças publicitárias para RuPaul, e nesse All Stars não foi diferente. O Show de Talentos, desafio que abre a temporada, foi repaginado para publicizar a Werq The World, uma residência de Las Vegas onde queens apresentam diversos números, desde dublagens até, ao que parece, performances no pole dance. Esse ponto de partida no novo ano da série, ao lado do desafio de Reading, onde as drags gongam umas às outras, deram a falsa sensação de uma competição acirrada e movimentada à seguir, ainda mais com a vitória de India Ferrah como a Melhor da Semana. Esse reconhecimento dado à uma drag da 3ª temporada, apagada em sua época e só lembrada por polêmicas, foi o gosto ideal para criar expectativas.
Sua batalha de dublagem com Yvie Oddly foi empolgante e, dado o resultado, Derrick Barry pegou as perucas loiras, guardou os vestidos na mala e foi embora. Sua eliminação ecoa outro preceito da mitologia do All Stars: quando uma competidora deixa uma impressão negativa na temporada original, ela está fadada a viver com esse estigma. E, por viver, entenda ter o batom escolhido numa performance mediana, e longe de justificar uma partida prematura.
A imitadora da Britney Spears sempre foi julgada por aparências e preconceitos. Desde a oitava temporada, Derrick Barry era subestimada e taxada de menor. Dessa vez, chegando no ateliê ao lado de queens como Couleé e Cracker, era até seguro imaginar que Barry não duraria muito naquele ecossistema cheio de rainhas ferozes. Esse ‘pensamento coletivo’ foi tão forte que, no primeiro tropeço, ela foi jogada aos leões. Inaugurando o Bottom 2 (as piores da semana) ao lado de Mayhem Miller, Barry sempre se mostrou mais inventiva e com potencial que suas colegas ruins no desafio. Miller, já fraca em sua temporada original, agora no All Stars apenas confirmou sua posição como uma das competidoras mais defasadas da história do programa.
Cheia de si e, no fundo, vazia de carisma e talento, ela, que acabou jogando a toalha alguns episódios depois, tomou o lugar de Derrick Barry de brilhar e sair de sua auto imposta ‘caixa da Britney’. Que fique claro que Derrick Barry também não se mostra à altura do título de Grande Estrela, além de ter sido extremamente ingênua de chegar com um discurso voltado a liberação da imagem de Britney Spears mas, no mesmo episódio, demonstrar o oposto. A começar pela entrada em referência ao figurino da cantora no VMA de 2000, Barry ainda usou um moletom com estampa de Spears no confessionário e, a cereja do bolo, resolveu performar no Show de Talentos, adivinhem, caracterizada como Britney. Mas se essa fosse a única burrada das queens, esse não seria o All Stars 5.
Ongina, queridinha da 1ª temporada do reality, finalmente voltou ao ateliê, mas mais parecia um gato amedrontado do que uma competidora buscando a Coroa. Após um fracasso imensurável no Reading, Ongina murchou seu número do Desafio Principal e se salvou do Bottom 2 por pouco. Logo no episódio seguinte, ela perdeu a voz na hora de gravar seu verso para a divertida canção I’m In Love, em adição a um visual simplório para o desafio Love The Skin You’re In (uma carta de amor à etnia das queens).
Na hora de votar, a Rumocracia foi unânime: todas escolheram eliminar Ongina, inclusive ela própria. Numa manobra covarde, a queen desistiu da competição sem mais nem menos, passo esse seguido por Mayhem Miller no quarto episódio, SheMZ. Desperdiçando vagas no elenco para outras competidoras com sede de ganhar, tanto Ongina quanto Mayhem ajudaram o All Stars 5 a escalar o pior elenco do show até agora.
Logo no Desafio do Reading, Jujubee cantou a bola da temporada: ‘Mariah Paris Balenciaga, ótimo, você chegou, agora temos que mudar o nome do programa para RuPaul’s Drag Race: Algumas Estrelas’. O sentimento de metade das escolhidas serem rainhas ‘filler’, isto é, que estão ali para encher linguiça, foi predominante. Das dez, 5 se sobressaem com as características para lutar pelo título de campeã.
Então, uma a uma, as drags fracas foram sendo votadas para fora da ilha, e o All Stars 5 cultivou uma narrativa encomendada, chata e cansativa. A chegada de um top cinco com Alexis, Blair, Jujubee, Cracker e Shea era previsível desde o início, e mesmo com a intriga da mentira de India, nada ajudou a acender a lenha da competição. Foram madeiras queimadas, cinzas ao vento, o ar de monotonia que foi sendo arrastado até o anúncio da vencedora.
A extinção dos mini challenges (pequenos e descontraídos desafios que abrem os episódios) foi outra das ruínas do All Stars 5, isso sem contar os desafios com equipes pré-definidas, gerando o atrito necessário para o drama televisivo. Num plano geral, os maxi challenges, desafios principais, caíram para o campo da comédia.
O tom descontraído e caricato se mostrou presente nos grupos musicais, na improvisação, no tenebroso Snatch Game do Amor e até no Baile. Essa predileção pelo escrutínio da seriedade muito beneficiou a comedy queen Miz Cracker. Depois de vencer o SheMZ e na reta final acumular vitórias seguidas no The Charles Family Backyard Ball e no Stand-Up Smackdown, a competidora da décima temporada chegou à final com o melhor timing possível.
Mas, como as recentes decisões de RuPaul mostram, o número de vitórias pouco importa na hora de coroar uma vencedora. Na temporada 11, Yvie Oddly era a finalista com menos wins e mesmo assim levou a coroa pra casa. Na 12, Gigi Goode sofreu do inverso quando acumulou 4 êxitos e saiu de mãos abanando. No All Stars 3 não foi diferente, Trixie Mattel era a finalista mais ‘fraca’ e acabou o ano no Hall da Fama.
O histórico é apenas um dos fatores determinantes, e não mais o único. Shea esteve no Bottom em 3 ocasiões, assim como Jujubee. O que fala mais alto é que Couleé chegou lá logo no início, quando a outra virada da temporada (apenas 1 queen Top e o resto no Bottom) ainda não tinha acontecido. Mas esse também não foi o x da questão na decisão de Ru. O All Stars 5 foi um acerto de contas, um cheque devolvido com juros e mais juros, aqui, o passado foi mais importante que o agora.
Shea Couleé passou o All Stars 5 todo relembrando seu momento de derrota na 9ª temporada. No inaugural ‘Dublar pela Coroa’, Sasha Velour puxou uma manobra de gênio quando, ao som de So Emotional, revelou pétalas de rosa saindo da peruca ruiva. Foi a jogada de mestre que, junto de seu impecável registro de passarelas e desafios, levou a rainha careca ao prêmio máximo no ano nove de Drag Race. Enquanto Shea rememorava o trauma, toda vez, ironicamente, de forma emocionada, sua narrativa de redenção e correção se acentuava no núcleo da season.
A trilha sonora comovente, os visuais referenciados às flores, o VT de Sasha em seu momento de glória, todos fatores que, na edição do programa, pareciam diminuir a conquista de Velour, denotando-a não merecedora do prêmio que ganhou em 2017. Isso, aliado a declaração de que Shea recusou tanto o All Stars 3 quanto o 4, amargam o sabor de sua esperada, e merecida, vitória.
Ao passar dos anos, a escolha de elenco do All Stars caiu numa máxima: a equipe de produção procura não ‘desperdiçar’ muitas rainhas emblemáticas e talentosas numa mesma temporada. A maldição e a glória do All Stars 2, com o elenco que reuniu o melhor do melhor, e acabou esgotando a gama de competidoras com fôlego de vitória.
Shea Couleé esperar o tempo passar e então aceitar a entrada na quinta edição acarretou numa competição quase nula. Jujubee, Miz Cracker, Blair e Alexis tinham fogo, mas nunca foram ameaçadoras para toda a pompa e talento de Couleé. Essa diretriz de Drag Race, emendando temporadas regulares com Grandes Estrelas, apenas danifica a aura do reality quando, como exemplo crasso esse All Stars 5, uma ótima vencedora não redime uma temporada ruim.