Nathalia Tetzner e Thuani Barbosa
Inspirada no mangá de mesmo nome, Alice in Borderland retorna ainda mais brutal em sua 2ª temporada. Dirigida por Shinsuke Sato, a trama persegue os protagonistas Ryōhei Arisu (Kento Yamazaki) e Yuzuha Usagi (Tao Tsuchiya) em uma Tóquio apocalíptica e repleta de jogos mortais, criados a partir dos naipes de Reis e Rainhas de um jogo de mesa. A criatividade para executar a sequência dos desafios é surpreendente, além de muito fiel à obra original, agregando valor sentimental para os fãs que acompanham a saga dessa Alice distópica. Sem medo de jogar com quem assiste, a série da Netflix bagunça o baralho e guarda uma carta na manga.
Se em 2020, ano em que a produção do estúdio japonês Robot Communications Inc. foi lançada, o público enxergou um grupo de personagens extremamente imaturos, confusos e perdidos, ao final de 2022, o desenvolvimento proporcionado pela vivência em meio ao caos desse universo distópico se tornou perceptível. No ápice da violência física e emocional do enredo, as atuações do elenco florescem como nunca antes visto e a assinatura caricata quase inata da Televisão asiática traz uma incoerente harmonia com a composição cinematográfica de Taro Kawazu.
Como toda sequência de produções originais, a comparação entre os diferentes formatos é inevitável, mas Alice in Borderland já está acostumada com suas adaptações do mangá para o anime e do anime para a série. Se nos quadrinhos japoneses as ilustrações adotam linhas cruas, o plano bidimensional da animação permite uma continuidade excepcional e, por fim, o live action consegue parcialmente unir tais qualidades.
Porém, tratando-se da transição de uma temporada para outra, o seriado trabalhou muito bem as mudanças, que conseguem ser perceptíveis e sofisticadas ao mesmo tempo. Em 2022, o roteiro flui com maior agilidade graças ao desenvolvimento do enredo, enquanto o tom adquire uma obscuridade que parece querer acabar com qualquer esperança de um final feliz. Os jogos mantiveram seu respeito pelos naipes, porém todos se tornaram mais psicológicos, moralistas e suscetíveis à manipulação do coração.
Pelo fato de se tratar da segunda e última temporada, a série da Netflix finalmente procura revelar a estrutura detrás desse mundo nefasto e desconhecido tanto pelos aprisionados na destruição quanto por quem assiste no conforto do sofá de casa. Uma das principais surpresas descobertas pelo protagonista Arisu é a diferenciação entre pessoas como ele, meros jogadores, e os criadores dos jogos, representantes dos naipes e classificados como cidadãos da cidade de Tóquio.
Responsáveis pela agonia das personagens e pela satisfação dos espectadores, os jogos brutais são, desta vez, exclusivamente elaborados pelos reis e rainhas do baralho, o que significa que as mortes nunca foram tão sangrentas, repugnantes e, ainda, constantes. Afinal, a presença do mercenário Rei de Espadas atirando a quase todo minuto chega a ser traumatizante até para quem está do outro lado da tela.
O romance entre Arisu e Usagi começa a ser desenvolvido ainda na primeira temporada, de um jeito costumeiro dos dramas asiáticos, ou seja, com muita sutileza e atenção aos pequenos detalhes, como respirações pesadas ao conversar, longos olhares e um bom jogo de câmera. Porém, é na continuação que esse affair se desenvolve, carregado de dúvidas e cumplicidade que beiram um amor adolescente, entregando momentos sensíveis mesmo em um universo tão mortal.
O manejo dessas duas sensações é muito bem feito pela direção de Shinsuke Sato e pelo roteiro escrito junto a Yoshiki Watabe e Yasuko Kuramitsu, que conseguem colocar delicadeza e choque na mesma obra, sem que uma machuque a outra. A cena em que o casal se banha em águas termais no meio de destroços e são surpreendidos por elefantes é o exemplo de um timing bem feito: mesmo em um ambiente desfavorável para que o amor aconteça, o menos esperado se revela cativante.
Derivado do mangá do artista Haro Aso, a produção audiovisual é fiel às características dos quadrinhos, seja no comportamento das personagens ou nas cenas dramatizadas. Shuntarō Chishiya (Nijirō Murakami), um dos coadjuvantes, exala a personalidade de anti-herói costumeira de alguns animes: silencioso, observador e insensível, de um jeito atrativo que chega a ser justificável; tal qual Itachi Uchiha, de Naruto.
Em contrapartida, é interessante ver a forma que a adaptação se desvencilhou do exibicionismo sexual recorrente desse gênero. Mesmo que o uso de biquínis e shorts por Hikari Kuina (Aya Asahina) e Ann Rizuna (Ayaka Miyoshi) ainda seja incoerente para a narrativa, não se equipara à sexualização corriqueira dos desenhos asiáticos.
Em evidência na 2ª temporada, os distintos passados dos criadores dos jogos, os fatídicos cidadãos de Tóquio, trazem profundidade para os oito episódios inéditos de Alice in Borderland. Ainda que os jogos sejam divididos em naipes, nos quais as Espadas significam a exigência física, Paus necessita da união em equipe e Ouros clame por inteligência, todos parecem ter em comum a carga emocional de uma partida de Copas.
Em especial, o terceiro e sexto capítulos atingem o primor da sensibilidade do audiovisual. Neles, o imponente e confiante Rei de Paus se revela um vocalista movido pelo laço com os amigos de sua banda e, igualmente a flor-da-pele, o Rei de Ouros ensina sobre o valor da vida para Chishiya, finalmente se libertando de erros nostálgicos.
Não recomendada para menores de 16 anos, a série da Netflix coloca em cena enormes explosões, ferimentos expostos e embates grotescos pela sobrevivência. Frente a este desafio, a equipe de caracterização e maquiagem faz um trabalho surpreendente ao conseguir trajar o realismo com fidelidade; afinal, são muitas as personagens que nasceram após horas na cadeira do camarim.
Entre elas, o irritante e completamente desfigurado após a primeira temporada, Suguru Niragi (Dori Sakurada), renasce do fogo e está de volta para provocar o nojo e o ódio. Já Morizono Aguni (Sho Aoyagi), também retorna com rancor em excesso, mas acompanhado de Heiya (Yuri Tsunematsu), a jovem arqueira que precisou ter a perna amputada e a quem ele protege com todo o seu coração de gigante.
Dividindo opiniões e separando os espectadores em fãs e haters, a cena final, diferente de tudo que foi mostrado ao longo de duas temporadas, não tem nada de mirabolante, deixando uma série que percorreu um caminho cheio de plot twists, com um final comum até demais. O que pode parecer um problema, acaba sendo o preço pela fidelidade da adaptação ao final do mangá, que o mantém idêntico ao produzido por Aso.
Repleto das referências mais óbvias a Alice no País das Maravilhas o jogo de críquete, as rosas brancas e a risadinha cínica da Rainha de Copas aumentam a animosidade para as últimas cenas que levam a atriz Riisa Naka ao melhor de sua atuação. Além de Arisu, a Rainha de Copas é a referência mais óbvia ao clássico de Lewis Carroll: manipuladora e bem humorada, a vilã consegue ser a favorita de muitos.
“Vida, vida, vida, que seja do jeito que for“. Inesperadamente, a canção Maravida de Gonzaguinha poderia facilmente ser a inspiração para as salas de jogos dessa temporada. Adicionando aprofundamentos morais baseados em suas trajetórias antes dos jogos, os reis, valetes e rainhas carregam algo em comum: os questionamentos sobre o valor da vida. Mesmo que rodeados pela morte, a vivência de cada um carrega significados profundos.
Sutilmente mostrado na primeira temporada com o exemplo de Chapeleiro e Aguni, os ideais sobre ela são reforçados por cada representante de jogo; carregando suas próprias peculiaridades, mas com a mesma intenção, mostrar o quão preciosa e o quanto precisa-se de fidelidade a si mesmo para conhecer sua jornada, dando a Arisu a lição mais valiosa da temporada. E quanto a você, já descobriu sua própria razão de viver?