Vitória Gomez
O Cinema, enquanto Arte, amplia horizontes. Seja ao apresentar pontos de vistas únicos que fazem o espectador pensar duas vezes ou retratar uma cultura diferente, entrar em contato com o desconhecido pode também ser desafiador. Na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, A Sibila é um desses desafios para um público desavisado: o longa, presente na seção Novos Diretores do festival, adapta o romance homônimo de uma importante escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luís.
No entanto, diferente de outros escritores portugueses, Bessa-Luís não virou leitura obrigatória no Ensino Médio ou nos vestibulares, e a adaptação de sua obra, tida por muitos como impossível de ser realizada pelo tom de monólogo, instiga o público a pensar em como a Literatura e o Cinema se constroem, se conectam e se sobrepõem (se é que o fazem). Em pouco mais de uma hora, Eduardo Brito, diretor estreante em longas-metragens, assume o desafio e questiona esses limites.
Assim como no livro, A Sibila se passa no interior de Portugal em meados do século XX, em um charmoso casarão rústico, com móveis de madeira, janelas altas e paredes amarelas claras. Nele, Germana (Joana Ribeiro), sentada em uma cadeira de balanço, conta a história da vida da tia, Maria Joaquina (Maria João Pinho) a um amigo. Quina, como a familiar era conhecida, foi a única das irmãs que não se casou e teve filhos e, por isso, criou uma afeição em especial com Germa (a sobrinha).
No entanto, como qualquer narrador, a mais nova tem suas opiniões e o monólogo em off não a deixa mentir. Porém, é através das farpas e dos comentários duvidosos proferidos pela sobrinha que o espectador analisa as situações, equilibrando o que se escuta com o que se vê. Nesse caso, o que se vê são as ações de Maria Joaquina, já que, passeando entre os tempos em uma linguagem cinematográfica dinâmica, o longa mescla a contação de Germa, no presente, às ações de Quina, no passado. A semelhança física entre as duas atrizes tornam a experiência ainda mais curiosa, ao, em um primeiro momento, tentar distinguir quem é quem.
Indo e voltando entre tempos da narrativa, mas sem sair da mesma sala da Casa da Vessada que foi herdada por Quina, A Sibila impõem um ritmo que frequentemente se contrapõem à narração. Enquanto a caracterização bucólica e a sensação de isolamento prevalecem entre ambos – essa segunda parte graças à fotografia de Mário Castanheira, que filma amplos ambientes internos e externos destacando a ausência de corpos -, a condução em forma de monólogo pede um passo atrás.
Isso porque a obra se constrói em um texto que parece tirado diretamente do livro base. Com uma língua afiada e um punho fechado, a protagonista reproduz falas literárias que fascinam pela riqueza de vocabulário e construções frasais únicas – embora afastem o espectador, que, pelo menos nas sessões da Mostra de São Paulo, não recebeu uma legenda adaptada para o português brasileiro e pode ter perdido parte da complexidade da narrativa. Tamanho é o floreio na escrita, em um roteiro também de Eduardo Brito, que é como assistir um filme narrado pelas irmãs Brontë ou Jane Austen – ou por Agustina Bessa-Luís.
Para além da condução, a narração e a atuação das duas protagonistas engrandecem o roteiro de Brito: desde o início, Germa retrata Quina de uma forma manipuladora, mas também extremamente esperta e resistente às adversidades de uma sociedade que a subjugava. Descrita como “possuidora de todo o puro enigma do ser humano”, na voz de Joana Ribeiro a mais velha ainda ganha tons de mistério, como se seus negócios nada secretos tivessem motivos alternativos por trás, uma espécie de feitiçaria. No entanto, o que se mostra na tela é uma Maria Joaquina simples, com desejos que não passam de ganância.
As dualidades vividas intensamente por Maria João Pinho retratam uma personagem solitária, que não se tornaria submissa a um homem apenas por convenção, mas que, pelo desejo por propriedades, jóias e outros bens materiais, afastou o afeto e comprava o amor da família. Germa foi uma das agraciadas: a sobrinha, uma criança curiosa e questionadora que se afastou da tia na infância, se reconectou com ela posteriormente. Na idade adulta, as diferenças – a mais nova foi viver na cidade e estudar artes, enquanto a mais velha defendia a vida no interior e os ensinamentos dos deveres de casa – criam uma relação magnética de admiração, mas também de ciúmes e ainda mais ganância.
A complexidade da protagonista ganha novos tons em sua relação com Custódio (Raimundo Cosme), criança moradora da Casa da Vessada antes de Quina herdar a posse do lugar. Adotado afetivamente, ele foi criado com a mesma sede por riqueza que ela. Porém, sob sua rigidez, se tornou um jovem ocioso e dependente, que, sem planos de vida, espera somente o testamento da mais velha. O filho adotivo, assim como os outros homens da trama – pais, irmãos e maridos – são os donos daquela Portugal arcaica e rural, mas, em A Sibila, a visão feminina de Germa sobre a tia a coloca em um local de superioridade ao gênero oposto: eles podiam ditar as regras no mundo, mas nas terras herdadas por Quina, especialmente no Casarão da Vessada, ela quem mandava.
Jogando um olhar sob uma Portugal patriarcal, A Sibila subverte uma lógica simplista ao retratar duas personagens decididas, cheias de nuances e defeitos (que podem tornar até difícil a conexão), mas sempre dispostas a bater de frente com quem fosse para conseguir o que queriam – inclusive, uma com a outra. Com um texto extremamente literário, o envolvimento depende da disposição em decifrar um idioma homônimo ao nosso, porém com poucos traços de similaridade prática. Em um exercício de como a linguagem cinematográfica pode corroborar com a adaptação literária, Eduardo Brito mostra que ambas Artes andam de mãos dadas.