Vitória Vulcano
Nos anos 80, em uma região campestre e isolada no mapa da Irlanda, uma garotinha responde aos estímulos mundanos com o silêncio. Ela não é incapaz de dialogar, nem decisivamente conformada a ponto de abrir mão das palavras, mas veste a capa da invisibilidade como tática de sobrevivência em uma casa apática e disfuncional. Essa é a premissa direta, dolorida e nada despretensiosa de The Quiet Girl, filme inspirado no conto Foster, de Claire Keegan, e dono de uma única e poderosa indicação ao Oscar 2023.
O papel de estreia de Catherine Clinch se move por uma eterna digestão sensorial. Na pele de Cáit, nome símbolo da pureza e riqueza em potencial, a atriz incorpora a inocência e curiosidade tipicamente infantis, que são abaladas todos os dias por várias faces da negligência, ora da escola ou daquele lar, ora de seus próprios pais e irmãos. Sem mascarar a dinâmica injustificável do abandono, as escolhas da produção de Cleona Ní Chrualaoí, entre o esconderijo nas plantações do quintal e as fugas do recreio, costuram o sofrimento de sua protagonista ao dos familiares, presos em um ciclo de pesares e pobreza.
Diante da quinta gravidez da mãe, Cáit é enviada para morar com parentes distantes e, até então, desconhecidos. A transição de atos acontece sob os mesmos faróis que guiam a grandiosidade de A Menina Silenciosa (título no Brasil) durante seus 94 minutos: os olhos atentos e profundos de Clinch, que capturam o cerne das mudanças manifestando as opiniões roubadas de sua boca. E, quando essas orbes azuis finalmente descobrem a realidade do afeto, não há como voltar atrás.
Amistosos e repletos de camadas, Eibhlín (Carrie Crowley) e Seán Cinnsealach (Andrew Bennett) coordenam a guinada narrativa na vida da garota, mostrando a força embutida nos gestos mais corriqueiros. Com o carinho espelhado pela presença constante do casal, Cáit se acostuma a tomar banhos quentes, compartilhar a cozinha sorrindo levemente e transformar sua quietude, antes refém do medo, em um traço de identidade em desenvolvimento. Aos poucos, os não-ditos – que preenchem igualmente a memória enlutada do novo lar – desenlaçam traumas para recondicionar os horizontes esperançosos da trama.
Dirigido e roteirizado por Colm Bairéad, que, aqui, comanda o primeiro longa-metragem de sua carreira, The Quiet Girl tem o poder especial de criar pontes entre suavidade e potência, sobretudo porque seu primor criativo é encontrar energia na simplicidade dos momentos encenados. Premiado e consolidado no universo dos curtas, o cineasta se desenvolve muito bem em uma história estendida que se batiza na dicotomia do amor: sentimento tão complexo quanto trivial, se sabemos lidar com ele.
O aspecto emotivo cresce, em paralelo ao ritmo lento e delicado da obra, pela conexão de elementos técnicos que quase cheiram à ternura. Panoramicamente imersiva e caseira, a fotografia de Kate McCullough (Normal People) acompanha a maneira de Cáit se relacionar com cada mínimo fator vital que deveria ser belo e colorido por natureza, porém, só alcança luz literal após a nítida evolução da personagem. A trilha sonora de Stephen Rennicks (O Quarto de Jack) também não apequena a experiência, climatizando da tempestuosidade à doçura deixadas no caminho.
Edificado por uma série de pioneirismos, A Menina Silenciosa trouxe alcance e impacto inéditos ao Cinema irlandês. A obra nasceu em Berlinale, onde recebeu o Urso de Cristal de Melhor Filme pelo Júri Generation Kplus 2022. Meses depois, se tornou a maior bilheteria já vista para um longa-metragem confeccionado na língua hibérnica, além de ganhar exibições em circuitos especializados da Coreia do Sul, Austrália, Inglaterra e dos Estados Unidos.
Declarado Melhor Filme Estrangeiro no London Film Critics Circle Awards 2022 e indicado a dois prêmios do BAFTA Awards 2023, o longa chega à 95ª edição do Oscar alargando seu currículo histórico. Essa é a primeira vez que a Irlanda consegue emplacar um representante na lista de nomeações a Melhor Filme Internacional, enfrentando produções da Alemanha, Argentina, Bélgica e Polônia.
Ainda que a vitória na competição seja projetada para o estrondoso Nada de Novo no Front, a campanha do país europeu na premiação nunca esteve em holofotes melhores. Em um movimento carinhosamente apelidado de “onda verde”, a terra dos duendes concorre com Os Banshees de Inisherin em outras nove categorias e está nas raízes de Paul Mescal, novato na disputa pela estatueta de Melhor Ator.
Dentro e fora de si, o filme de Bairéad é sobre construção afetiva e, acima de tudo, sobre como a ternura é revolucionária. O amor tem diferentes linguagens, ultrapassa convenções e aprende a significar por si mesmo. A cada frame, o longa mostra que não precisa de muito para emocionar com o reconhecimento de suas sutis, rotineiras e belíssimas expressões de humanidade. No fim, as palavras se apequenam, o sol paira sobre um tremendo abraço e, nas entrelinhas do pertencimento, The Quiet Girl faz sua prosa sentimental romper qualquer silêncio.