Enzo Caramori
É incerto se a noite afora, que entrava em um pequeno corredor na rua Augusta, é que invadia uma sala escura com seus barulhos, ou se seria o novo filme do diretor Júlio Bressane que venta e, acima de tudo, uiva. Na sessão de A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (2023) na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, algo de misterioso ressoava durante a experiência de quatrocentos minutos, sete horas e variados tempos. O resgate, pelo próprio diretor em conjunto com seu montador Rodrigo Lima, de sua vasta filmografia e de seu acervo íntimo de imagens, instaura uma determinada fantasmagoria do que é, realmente, uma experiência de Cinema.
A palavra monumento, que atravessa as descrições do longa e do trabalho de Bressane, é o índice que dá a essência do que o diretor busca em uma corrente de fragmentos de imagens que nunca se apossam de valor narrativo algum, mas se multiplicam, refazem e se repetem, exigindo do espectador não necessariamente o assistir; mas o olhar. Da mesma forma que se pode flanear, distrair-se e olhar de diversos ângulos para um monumento, A Longa Viagem do Ônibus Amarelo convoca uma viagem estética por imagens, domando o tempo e restituindo a vertigem de um passado distante. É um monumento para além de sua duração de uma tarde, mas por se construir pelo desvelamento da montagem – a estrutura verdadeiramente primal dos filmes – em construir uma vasta estrutura quase arquivística, em que tudo que Bressane produziu, sendo um dos maiores realizadores brasileiros de Cinema, eterniza-se em um ritmo onírico, descontínuo e poético da Memória.
Talvez o enquadramento de A Longa Viagem do Ônibus Amarelo em uma sinopse fechada possa atribuir como elemento central o que o Cinema e a vivência com imagens surte à experiência vivida. No entanto, nessa lógica, qualquer cobrança de comentário do autor sobre o que registrou e viveu – como a viagem que dá nome ao filme, realizada com sua companheira Rosa Dias e o cineasta Andrea Tonacci – não entende o que, verdadeiramente, reverbera seu fluxo e seu ritmo de imagens que parecem muito mais almejar o gesto do que o sentido. Variadas sequências são suscitadas por movimentos, objetos e espaços que desencadeiam a montagem: a claquete, uma câmera na mão, o subir, a língua e o descer de uma escada são alguns dos exemplos de imagens postas em sequências com um teor infinito e espiralar. Procuradas e escavadas nos filmes do diretor, essas cenas, aqui, não são referenciadas em uma condição de índices a suas próprias histórias, mas simplesmente a suas propriedades enquanto gestos de Cinema.
Produzido no processo de restauração de seu material fílmico, o caráter de sua montagem promove o toque mútuo de suas filmagens amadoras e familiares com suas peças ficcionais, que não constroem nenhum novo gênero ou algo híbrido como uma autoficção. Até mesmo essas categorias – de ficção ou documentário – são diluídas a favor de uma dinâmica intrincada, em que seus longas ficcionais são colocados em uma seara íntima e o íntimo é proposto a ficcionalização, funcionando numa ordem de montagem e de percepção em que são colocados a uma mesma condição.
Júlio Bressane percebe imagens por imagens, não pelo que elas possam construir em significado pela integridade e unidade, mas enquanto palimpsestos nos quais o tempo se imprime e se apaga novamente pela maneira elétrica em que a memória não somente individual, mas do filme – mídia e entidade de criação – se faz em sua vida. É mais um biografema do que uma biografia, enredando a partir da ficção e da não literalidade da memória a uma adaptação do real em imagens que avançam e retrocedem e que parecem, em um certo momento, serem um making-of não só da vida particular, mas de uma escritura específica do Cinema Brasileiro.
O Cinema não se lembra como as enciclopédias e os dicionários, e também não se esquece como os arquivos. Mais contempla, internamente, dentro de seus blocos de ações, o mundo que o rodeia. Especialmente, A Longa Viagem do Ônibus Amarelo faz que, mesmo dispondo-se de títulos de linguagem cinematográfica complexa e sofisticada, os filmes apenas sejam pares de olhos comuns descobrindo novas paisagens e combinações de sentido, numa viagem-captura em que até mesmo o que não pertence ao espectador – a História íntima – desperte o esplendor.
Os rastros de uma montagem que beira o caráter confessional, expondo as obsessões estéticas e conceituais da grande autoria de Júlio Bressane, situa além de um caráter ontológico do Cinema, em que o silêncio inaugura a obra. Como um preâmbulo aos sentidos imagináveis, uma elegia não a suas seis décadas de produção, mas à memória registrada e seu suporte, como a vida, tão efêmera, mas ao mesmo tempo eterna, na forma de Arte.