Sabrina G. Ferreira
No mundo globalizado em que vivemos, cercados por diversas possibilidades de comunicação com os demais, fica difícil entender que existem outras realidades bem diversas às nossas. Essa disparidade é mostrada brilhantemente em A Felicidade das Pequenas Coisas (no inglês, Lunana: A Yak in the Classroom). Com direção e roteiro de Pawo Choyning Dorji (Hema Hema: Sing Me a Song While I Wait), o filme conta a história de Ugyen (Sherab Dorji), um jovem professor que sonha em se tornar cantor na Austrália. Todavia, Ugyen trabalha para o governo, que lhe atribui a missão de lecionar por alguns meses em Lunana, uma aldeia no Butão, país da Ásia Meridional, conhecido como um dos locais mais remotos do mundo.
Após uma longa caminhada de oito dias para chegar ao destino, ele se surpreende ao finalmente se deparar com uma escola sem os mínimos recursos necessários para conseguir ensinar: não existe quadro negro, o material didático é escasso e a estrutura do local é precária. Neste momento Ugyen pensa em desistir. A única coisa capaz de promover uma mudança de rumo no desmotivado protagonista é a comovente motivação das crianças, especialmente da líder da turma, Pem Zam, que com seu olhar vivaz, consegue transmitir o desejo sincero em aprender. Aliás, é visível a evolução de valores do personagem quando ele doa o papel que reveste suas janelas para protegê-lo do frio, para que seus alunos tenham onde estudar.
“A subida vai ser difícil?” – Ugyen
“Vai ser fácil. É um passeio ao lado do rio por seis dias. Depois tem uma subidinha. Quando chegarmos lá em cima, a caminhada é ótima. Você vai querer que nunca acabe.” – Aldeão
A Felicidade das Pequenas Coisas estreou em outubro de 2019 no BFI Festival de Cinema de Londres, e até o momento, ganhou 18 prêmios, incluindo o de Melhor Filme pela audiência do Festival de Cinema CinemAsia, e de Melhor Ator para Sherab Dorji no Festival Internacional de Cinema Saint-Jean-de-Luz. Neste ano, é indicado ao Oscar 2022 na categoria Melhor Filme Internacional, junto com outros longas asiáticos, como o japonês Drive My Car, que também concorre em Melhor Filme, Direção e Roteiro Adaptado. Além disso, o indiano Writing With Fire está indicado ao prêmio de Documentário. A Felicidade das Pequenas Coisas é o segundo filme que o Butão submeteu ao Oscar, mais de 20 depois de The Cup (Phörpa), que acabou não nomeado.
É importante destacar que, apesar da temática frequentemente utilizada no Cinema – ao retratar a história de algum professor ou educador especial – A Felicidade das Pequenas Coisas é cativante, e construído com tamanha sensibilidade que realmente proporciona momentos de inspiração, para o deleite dos amantes da Sétima Arte, ao evitar cair no melodrama barato e é extremamente bem trabalhado no quesito construção sentimental, respeitando o contexto cultural em que a história se insere.
Outro quesito importante é o desinteresse de Ugyen nos valores da sua cultura de origem, se alinhando ao ponto de vista do espectador estrangeiro: tanto aqueles que possuem opiniões ignorantes acerca de culturas similares a apresentada na obra, quanto aqueles vindos de locais pouco desenvolvidos (como Ugyen) e se sentem presos ali. Esse sentimento de aprisionamento do protagonista é evidenciado na cena em que ele é questionado por um aldeão sobre o motivo de querer buscar a felicidade longe do Butão, conhecido como o país mais feliz do mundo; esse debate serve como um contribuinte para refletirmos sobre os motivos do personagem querer fugir do país com urgência e viver a globalização desejada.
A figura do professor é extremamente valorizada em A Felicidade das Pequenas Coisas. Ugyen é alvo de reverência pelos moradores da aldeia, pois como um aluno repete as palavras dos camponeses, o professor é capaz de tocar o nosso futuro. Há o reconhecimento de que o conhecimento vem de fora, ligando esse conceito à imagem dos professores. E eis uma das profissões mais importantes e honradas que existem, afinal o professor pode ser decisivo na evolução de pessoas que já nascem destinadas a serem pastores de iaques ou coletores de fungos, alcancem o sonho de serem educadas para que construam um futuro melhor naquela realidade. E isso fica ainda mais evidente em um lugar como Lunana.
Nesse contexto, a música cantada por Saldon, personagem de Kelden Lhamo Gurungm, também se encaixa perfeitamente, já que cria uma dualidade conflituosa nas decisões que serão tomadas por Ugyen, reforçando a necessidade de fuga do protagonista como certa, e ao mesmo tempo, serve como reconexão a espiritual da qual ele tanto necessita. Para nós, fica a dúvida deixada pelo filme, se é mais gratificante ir em busca de um sonho vago e incerto, ou talvez, vivenciar algo concreto, arquitetado com pequenas ambições, mas que resultam em grandes ganhos culturais para a própria identidade.
O filme A Felicidade das Pequenas Coisas é sobre a necessidade de encontrar um momento de paz na vida para reavaliar as prioridades e refletir sobre o real significado da consciência plena de satisfação e sua importância para nós. Trata-se de uma mensagem sobre felicidade, vinda de um lugar remoto, onde esse sentimento é aclamado e intenta divulgar sua cultura e modo de vida para o homem moderno dos quatro cantos do mundo.