Jamily Rigonatto
“Eu não acho que felizes para sempre é uma coisa que acontece com a gente, Dev, acho que é uma coisa que a gente escolhe fazer acontecer.”
Príncipes e princesas são protagonistas quando o assunto são amores perfeitos. Por baixo das coroas, os relacionamentos são fixados em sorrisos brilhantes e atitudes cavalheirescas. Isso é tudo o que Dev Deshpande vê aos 10 anos de idade ao assistir Para Todo o Sempre na televisão da sala e se imaginar fazendo parte daquele universo mágico. O reality show tem uma proposta simples: colocar várias mulheres para conquistar um príncipe e a mais sortuda ganha o casamento dos sonhos. Em A estratégia do charme – livro publicado sob o selo Paralela pela Companhia das Letras – os encantados perdem a pose e a verdadeira trama prova que imperial é ser de verdade.
Algumas coisas se dissipam com o tempo, como aquelas ideias tomadas de inocência em que crianças imaginam um futuro como astronautas gladiadores. No caso de Dev, a paixão pelo amor só aumentou ao longo dos anos. Por isso, o personagem resolveu que faria parte de seu programa favorito de uma maneira ou de outra. Formado em Rádio TV, ele se torna o produtor mais bem-sucedido daquele devaneio roteirizado. Enquanto ajuda mulheres a mostrarem para as câmeras seus melhores lados, sua vida passa a existir respaldada por um carisma aparentemente inabalável.
Por mais próximo de toda a montagem de câmeras, cenários e figurinos que o produtor esteja, ele não consegue enxergar tudo com clareza. Seus olhos são ingênuos, donos de uma crença tão sincera nas finalidades de Para Todo o Sempre que chega a ser estressante. Para sair do transe causado por todos os passeios românticos e diálogos forçados, é necessário que uma força com nome e sobrenome se insira na história: Charlie Winshaw. O galã da nova temporada do programa surge para mostrar que os verdadeiros contos de fadas têm cheiro de sabonete de aveia.
Em poucas páginas, a narrativa – traduzida por Vitor Martins – sai do enquadramento e se debruça sobre os bastidores. Charlie tem a aparência de todos os outros protagonistas do reality, mas se comporta como quem está tendo uma crise de ansiedade – e está. Diante das atitudes pouco charmosas do príncipe da edição, não resta alternativa a não ser colocar Dev para orientá-lo. A aproximação prova a máxima de que é possível se apaixonar em algumas semanas. No entanto, a vida gosta de pregar peças e juntar os mocinhos é uma delas.
A construção de Charlie é um dos pontos mais interessantes do texto. A autora Alison Cochrun sabe delineá-lo com muita delicadeza e fazer as questões psicológicas se inserirem com a normalidade necessária. O personagem, que tem TOC e ansiedade, ganha nuances muito sinceras e tem essas questões exploradas com clareza. A estratégia do charme foge dos clichês e aproxima as figuras de uma realidade palpável na qual a saúde mental é secundarizada e ocultada por estigmas.
Talvez seja isso que faça o livro ganhar ares tão encantadores: os protagonistas são de verdade. Por mais atrapalhado que Char seja, fica fácil se apaixonar por ele junto a Dev. Presenciar as reações únicas, medos e inseguranças de um homem capaz de ter todas as mulheres aos seus pés desmonta os amores idealizados. O absoluto é utópico e não existem filmes da Disney suficientes para mudar isso.
“Charlie sente o som desfazendo todos os seus medos mais sombrios. – Eu tenho TOC – diz ele, antes que acabe se contendo.
Dev apoia o cotovelo no balcão e apoia o rosto nas mãos.
– Tudo bem.”
De um capítulo para outro – ou de uma nota de roteiro a outra – os dois se aproximam cada vez mais, mas há uma barreira quase sólida invadindo isso. Afinal, o programa sempre acaba com um príncipe e uma princesa, o príncipe e o produtor de bermuda cargo nunca ficariam juntos para todo o sempre. Ainda assim, nada ali é superficial e isso assusta Dev profundamente, já que ter uma pessoa que nos lê por inteiro inclui os rascunhos rabiscados, as páginas amassadas e os monólogos constrangedores.
Alguém condicionado a ideia de que só a perfeição merece o amor também deixa de se permitir. Acompanhar o produtor saindo do cara divertido e confiante para alguém que sequer se sente passível de ser amado dói. Não é como se isso acontecesse porque não queremos encarar os lados frágeis, na verdade o angustiante é ver o quanto a vulnerabilidade é renegada. Para amar o amor, é preciso entender que sentir tem suas flores e espinhos.
As voltas expostas no texto antes do tal ‘felizes para sempre’ transformam os romances em algo sinceramente possível. Para além da saúde mental, são esmiuçadas problemáticas relacionadas à comunidade queer e a pessoas racializadas. A importância dessa representatividade não estereotipada e aberta ao diálogo é essencial, ainda mais se tratando de um livro destinado a um público jovem. Afinal, os romances de TV sempre foram brancos, héteros e cisgênero.
A estratégia do charme não deixa de chamar atenção para a importância dos relacionamentos. Aqui, como na vida, a evolução depende do indivíduo, mas também das amizades e pessoas que constroem a existência do lado de fora. Jules e Parisa, as melhores amigas dos protagonistas, representam pontes de apoio, suas atitudes têm um tom de cuidado e preocupação. As histórias não tem como chegar aos seus clímax com um personagem que trabalha sozinho.
A dinâmica de desenvolver as etapas que antecedem a rotina a dois em uma casinha aconchegante faz da leitura pouco monótona. É difícil largar o livro em um canto sem pensar em quais seriam os próximos passos. O jeito que os acontecimentos se amarram prendem a atenção com excelência e desvendar essas essências é realmente agradável. O processo encanta tanto quanto a finalidade.
O pecado de Alison fica para as últimas páginas. Dev passa tanto tempo se escondendo que parece ter pouco para se reconstruir, e muitas de suas questões passam batidas. Restam dilemas demais em resoluções apressadas, algo que contraria o modo como a narrativa é construída até esse ponto. A complexidade das interrogações ganha menos capítulos do que deveria e não é como se isso fosse capaz de tirar a magia da leitura, mas é decepcionante.
“– Dev Deshpande, você gostaria de se tornar meu príncipe?
Se felizes para sempre é uma escolha, então Dev escolhe para si mesmo.
– Sim.”
Ao fim, a maior reflexão é sobre quem merece amor. E não, amor não é um sentimento intocado reservado para homens e mulheres em carruagens bonitas. É para aqueles que se propõem a se mostrar por inteiro e permitem que alguém se encante até com piadas bobas. É para todos que enxergam no outro mais do que a parte superficial. Amor é universal: é meu, é seu e é também para moços um pouco atrapalhados.
Amar A estratégia do charme pode ser um pouco clichê e quem não gosta de ver as coisas terminando felizes pode atirar a primeira pedra. A vida nem sempre é como se lê nos livros, mas se tem algo que as pessoas podem fazer a si mesmas é entender o quanto merecem sentir. A certeza resultante é que todo o charme estava na estratégia que faz a publicação tão apaixonante.