Gabriel Gomes Santana
Coprodução de Gustavo Lipsztein, Breno Silveira e Thomas Stravos, a série 1 Contra Todos está disponível no Globoplay com suas 4 temporadas completas. Ela retrata a vida de Cadu, um homem intrinsecamente honesto, mas com uma dificuldade tremenda de se impor frente às ameaças que o cercam. Indicada por dois anos consecutivos ao Emmy Internacional nas categorias de Melhor Série Dramática e Melhor Ator para Júlio Andrade (intérprete de Cadu), a trama explora conflitos de valores morais e éticos, expondo a linha tênue entre honestidade e corrupção.
Em um primeiro momento, nosso protagonista é visto como um capacho. Demitido do emprego por não adotar o famoso jeitinho brasileiro, o anti-herói é colocado sempre à margem de seus próprios problemas: uma esposa grávida, um filho pequeno para criar, dívidas atrasadas e a reforma da casa para terminar. Tratado com desdém, sua falta de posicionamento o torna refém de si mesmo e dessa mesma maneira, acaba sendo envolvido na maior apreensão de drogas do Brasil e da América Latina.
Ao ser preso, Cadu é visto pelos outros detentos como Dr. do Tráfico e, com isso, terá que usar todas as suas habilidades de persuasão para sobreviver em um ambiente de constante confronto externo (relação com os demais presos) e interno (o choque de identidade). Há quem diga que o drama da vida do protagonista está conectado à preocupação que o mesmo tem pela preservação de seus familiares. Penso o contrário. O drama é muito mais pessoal, pois seu caráter muda conforme o ambiente e situações nas quais ele acaba sendo exposto. Carlos Eduardo constrói personas, se desvinculando de seu eu verdadeiro em prol da autopreservação.
Estas transgressões de personalidade apenas foram possíveis graças à brilhante interpretação de Júlio Andrade. O ator conseguiu depositar o desespero necessário para passar adiante a imagem de alguém que o público pudesse se solidarizar, ainda que suas ações não fossem moralmente aceitas. Os escândalos envoltos na vida da personagem retratam a situação caótica do país, com temáticas com as quais o espectador brasileiro, infelizmente, já está acostumado: tráfico, corrupção estrutural, família, paixões não correspondidas e problemas que parecem não ter controle.
Entre vícios e virtudes, erros e acertos, podemos dizer que o final deste enredo foi sabiamente concluído de acordo com a intensidade cênica exigida ao longo das temporadas e, sobretudo, pelas atuações incrivelmente desempenhadas pelo elenco. Personagens secundários como: Malu (Julia Ianina), Pepe (Roberto Birindelli), Mãe (Silvio Guindane), Téo (João Fernandes) e Pepita (Juliana Konrad) foram imprescindíveis para o desenvolvimento da narrativa.
Carregados por passados sombrios, cada personagem exprime o que há de mais frágil dos traumas que um sistema corrupto pode fornecer. Deste modo, os problemas de Cadu não se isolam em primeiro plano como um protagonista coitado, presente nos seriados de ação policial. Malu é uma mulher que vê sua família desmoronar e ao mesmo tempo tendo que se manter firme. Pepe, por sua vez, é o retrato de um traficante nascido no cerne da brutal desigualdade social. Mãe é reflexo de alguém que é maltratado pela sociedade por ser quem realmente é, afinal, ele lida com a homofobia e o duro preconceito de ser um ex-presidiário. Téo e Pepita enfrentam passados obscuros marcados pelo instável e violento ambiente que os cercam.
A relação entre Cadu e Malu, por exemplo, exibe uma parceria entre um casal que se admira e tem uma certa cumplicidade, mas que por ventura, os rumos da vida acabam os separando. “A Malu é uma mulher forte que, mesmo em situações absurdamente diferentes, permanece sendo a mesma pessoa”, afirmou Julia Ianina em entrevista ao Observatório do Cinema, sendo bem categórica em relação à solidez de sua personagem. Fato é que ela estabelece conexões importantes para a sobrevivência de seus familiares e, consequentemente, garante suporte afetivo ao protagonista.
Porém é válido ressaltar que a figura heroica do enredo, ao meu ver, não tenha sido almejada pelos diretores. Até porque o modus operandi desta série está pautado pelo inesperado emocional, uma característica na qual Breno Silveira está acostumado há muito tempo em suas direções. Também pudera, uma vez que Breno foi diretor de outras duas grandiosas obras do cinema nacional: 2 Filhos de Francisco e Gonzaga: De Pai pra Filho.
Breno que, além de diretor, também é roteirista da série, cria laços profundamente afetivos entre as personagens. É curioso como a trama pode ser enquadrada tanto como um drama quanto uma ação policial/investigativa. Ainda na primeira temporada notamos que cada detento estabelece aproximações que vão além do simples interesse de troca com o Dr. do Tráfico. Cadu é visto como figura respeitada por fingir ser quem realmente é, mas ele igualmente trata cordialmente os seus companheiros de maneira a qual eles geralmente não são tratados.
É justamente por conta dessas relações de pessoalidade e proximidade com os detentos que Cadu se torna amado e não temido. O protagonista é capaz de conquistar a simpatia de alguns detentos e formar uma espécie de família, como é o caso de Mãe e China, ambos fiéis escudeiros do Doutor. A semelhança que 1 Contra Todos tem com o filme Carandiru é nítida sob muitos aspectos. O principal deles é o conjunto de biografias capazes de humanizar os presidiários, ainda que estes tenham praticado crimes hediondos. Talvez, pelo tom romântico da direção de Breno, a crítica ao sistema prisional possa ficar em segundo plano (diferentemente de Carandiru).
Dá orgulho saber que 1 Contra Todos é uma produção brasileira. Sua relevância para o cenário cinematográfico nacional é tanta, que o reconhecimento internacional só reforça o quão rico é o nosso leque de produções de alta qualidade, sem necessariamente depender do monopólio dos estúdios da Rede Globo, visto que o seriado é de autoria da Fox. A composição da trilha sonora é outro destaque positivo. O clássico do poeta Criolo, Não Existe Amor em SP , reforça a tônica essência da série ainda na abertura dos episódios.
Reduzir em algumas palavras o motivo de grande aceitação e sucesso da produção pelo público seria injusto e pretensioso de minha parte. No entanto, creio que uma das singularidades desta obra se pauta pela rápida identificação com os diferentes cenários e faces de um Brasil adoecido e exposto a diversos dilemas. Se engana quem resume o propósito desta produção como mais um seriado sobre tráfico de drogas. Esta narrativa trabalha com ambiguidades e escolhas propositadamente dualistas.
Para entender o comportamento de Cadu, é preciso observar o contexto no qual ele está inserido. Por mais ingênuo que pareça, nosso protagonista tem princípios éticos com os quais ele reluta em não abrir mão, até mesmo em situações de risco próprio. Até que ponto alguém pode ser fiel a seus valores? Eis o questionamento necessário a se fazer para compreender as ações e escolhas de Carlos Eduardo Fortuna.
Pelo ambiente no qual Cadu se insere, seria vantajoso para ele agir de maneira parecida a de seus colegas. Entretanto, o mesmo opta por não ultrapassar seus limites éticos como, por exemplo, tirar a vida de alguém. Ainda que tentasse resguardar a integridade dos seus ideais, o advogado era tentado pelo receio de frustrar a si mesmo e, sem saber, era apenas isso que o jogava constantemente no buraco.
A cada tomada de decisão da personagem, um pensamento ambivalente me vinha de imediato: Cadu está sendo honesto e cuidadoso (na medida do possível) ou esperto e irresponsável? Teria ele culpa por todos estes acontecimentos? Refém de Don Pepe ou refém de si mesmo? A transformação do homem bom, paciente e cauteloso em uma figura inescrupulosa, violenta e intensa nos faz repensar suas atitudes quando estas fogem de controle. Afinal, o que nos torna bons ou maus têm a ver com o contexto no qual vivenciamos.
As quatro temporadas que compõem 1 Contra Todos retratam de maneiras distintas alguém que é refém apenas de si. Ainda que sob pressão, enquadrado em tensões diversas, o personagem sempre teve escolhas. O se está fora de questão quando o assunto é lógico e racional e por isso, a série mostra sua grandeza. Ela expõe que tomadas de decisão em situações passionais não são racionais. Cadu, apesar de sua incrível habilidade de persuasão, não consegue distinguir o que é justo do praticável, maleável e confortável. Em outras palavras, Carlos Eduardo Lacerda é mais um brasileiro tentando ser honesto e amável, ainda que seu ambiente seja cruel, oportunista e desagradável.