Vitor Assis Brasil: entre Berklee e o beco das garrafas

Eli Vagner F. Rodrigues

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No seleto grupo de colecionadores de LPs da música instrumental brasileira, aqueles que possuem o álbum Desenhos, de Vitor Assis Brasil, podem se vangloriar de ter um dos documentos fonográficos mais importantes do jazz brasileiro. A gravação de 1966 completa 50 anos e é uma das primeiras mostras do talento daquele que foi considerado o maior saxofonista brasileiro. O álbum foi gravado pelo quarteto integrado pelo pianista Tenório Júnior, morto pelo regime militar argentino em 76, Edison Lobo, no contrabaixo (com apenas 19 anos) e Chico “Batera”, cujo nome dispensa a menção ao instrumento.

Marcos Boreli, músico que conviveu com Vitor Assis Brasil, afirma que o saxofonista, já nessa gravação, deixaria pela primeira vez impressa no vinil a marca do extraordinário improvisador e a inegável influência – que o acompanharia pelo resto de sua trajetória musical – de John Coltrane e Phill Woods. Para quem não pode se dar ao luxo de possuir os originais vale dizer que hoje, como quase tudo, a gravação pode ser encontrada no youtube – para os mais afortunados, vale avisar: o disco foi relançado esse ano, pelo selo português Mad About Records. Obviamente não com a mesma sonoridade e definição, observariam, com razão, os puristas do vinil!

Deixando a polêmica sobre a superioridade do vinil como mídia para outra ocasião, o aniversário de meio século de Desenhos é um ótimo pretexto para retomarmos alguns aspectos da carreira de Vitor Assis Brasil.

Segundo João Carlos Assis Brasil, seu irmão gêmeo – que mereceria outro texto, dada sua importância para a música brasileira – Vitor começou como autodidata com uma gaita (harmônica de boca, para os portugueses) e aos 17 anos iniciou-se no saxofone. No início dos anos 60 Vitor Assis Brasil estudou, ou foi descoberto, como afirma o irmão, por ninguém menos que Paulo Moura, e logo começou a participar das jam sessions dos lendários “Little Club” e “Bottles” no Beco das Garrafas em Copacabana. Esse espaço boêmio-musical viu nascer algumas figuras importantes da música brasileira e foi o berço do que viria a se consolidar como a Bossa Nova. Além do time de cantores como Elis Regina, Nara Leão, Sylvinha Telles, Claudette Soares, Jorge Ben, Marisa Gata Mansa, Doris Monteiro, Wilson Simonal, Alaíde Costa, Pery Ribeiro e Leny Andrade, passaram por ali grandes instrumentistas como Sérgio Mendes, Baden Powell, Airto Moreira, Johnny Alf, Hélcio Milito, Chico Batera, Wilson das Neves, Durval Ferreira, Dom Um Romão, Paulo Moura e Trio Bossa Três.

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Nessa constelação de músicos que despontou no “beco das garrafas” – o nome se refere às garrafas que eram atiradas pelos moradores do entorno, incomodados com o barulho e não às garrafas que eram esvaziadas nos bares –  o nome mais representativo do que podemos chamar de “jazz brasileiro” foi Vitor Assis Brasil. A expressão carrega alguma liberdade uma vez que não se pode afirmar que existe no Brasil um movimento musical caracterizado pelo jazz como gênero “fundamental”, mas se refere à categoria dos músicos e da produção de música instrumental brasileira que apresenta forte influência do jazz. Nessa “categoria”, a obra de Vitor Assis Brasil é exemplar, tanto no aspecto da formação musical como na incorporação do fraseado jazzístico, improvisação e reinterpretações de clássicos tanto da música brasileira quanto do jazz, os chamados jazz standard  (“Love for sale” e “Nada será como antes” do álbum Pedrinho, “Summertime” de Trajeto, o disco Jobim em sua integridade, entre inúmeros outros exemplos).

Como são raros no Brasil os artistas que conseguiram projeção nacional e internacional com uma obra inteiramente voltada para a formação instrumental, baseada ou não no jazz, artistas como Vitor Assis Brasil figuram como felizes exceções, ao lado de Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e Raul de Souza. Vitor Assis Brasil conseguiu estabelecer a excelência em seu instrumento e acima de tudo a comunicação entre a linguagem do jazz e os temas e ritmos do universo da MPB.

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Ao ouvi-lo no “Clube de Jazz e Bossa” em 1965, o maestro austríaco Friederich Gulda, amante do Jazz, convidou Vitor Assis a participar de um concurso internacional de jazz em Viena. O resultado foi o terceiro lugar do concurso de Viena e o prêmio de melhor solista do Festival de Berlim. Mas o que consolidou sua veia jazzística foram os cinco anos que passou no EUA, graças a uma bolsa que ganhou na prestigiosa Berklee School of Music, em Boston. Nesse período tocou com músicos americanos e brasileiros e chegou a formar sua própria banda. Posteriormente tocou com Dizzy Dillespie, Jeremy Steig, Ritchie Cole, Clark Terry, Chick Correa, Ron Carter e Bob Mover.

A partir dos anos 70, de volta ao Brasil, o músico viveu as dificuldades comuns aos artistas que não se submetem à, segundo ele próprio, “tocar bolero na praça Mauá”. Como a expressão e expansão da música popular se dá, em grande medida, pela força da palavra e não tanto pelo impacto da composição musical em si (pense no rock sem as letras), o sucesso não alcança com tanta facilidade o universo “mais abstrato” da música instrumental. Neste contexto, os “artistas do instrumento” parecem ter sido coadjuvantes em relação aos grandes nomes da MPB.

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Para conhecer a obra do artista três álbuns são fundamentais e podem ser considerados obras primas da música instrumental brasileira: Pedrinho, Victor Assis Brasil Toca Antonio Carlos Jobim e Self Portrait, este último, um álbum gravado pelo irmão com composições de Vitor. O depoimento de Marcos Boreli sobre o amigo Vitor dá detalhes desta história:

“Tendo morrido aos trinta e cinco anos, em consequência de periartite nodosa, uma doença circulatória rara e grave, Victor deixou uma discografia pequena, restrita a oito álbuns que gravou entre 1966 e 1980. Muito pouco para sua força criativa. Pouca gente sabe, por exemplo, que a obra que deixou revela um compositor fecundo. Quando Victor morreu, Dona Elba manteve fechadas duas malas que encontrou no quarto do filho. Em 1988, quando o irmão João Carlos deixou o apartamento da Marquês de Abrantes, Dona Elba entregou-lhe as malas. Um dia, João Carlos resolveu abri-las e deparou com mais de quatrocentas composições inéditas: peças para piano solo, para orquestra, quarteto de cordas, jazz erudito (uma vertente que começou a explorar, seguindo as pegadas da chamada “Third Stream”, uma corrente musical que pretendia unir elementos do jazz e da música clássica)”.

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João Carlos Assis Brasil conta, orgulhoso, que “o Victor aprendeu saxofone sozinho, e ganhou uma bolsa para tocar em Berklee – Boston EUA. Ele era garoto e foi. Chegou lá, tocou, o professor de saxofone falou: “vem cá, afinal você está aqui para aprender ou para ensinar?”

A faixa “Nada será como antes”, do álbum Pedrinho, com Victor Assis Brasil – sax alto e soprano; Jotinha Moraes – piano e vibrafone; Paulo Russo – contrabaixo e Ted Moore – bateria, é um bom exemplo da fusão do fraseado jazzístico com temas da música brasileira dos anos 60/70.

Do mesmo álbum, “Night and Day” deixa claro o domínio de elementos fundamentais para a excelência na linguagem do jazz, arranjo, improviso, retorno aos standards, desenvoltura, espontaneidade e técnica apurada.

A música de Vitor Assis Brasil já foi classificada nas seguintes categorias: Fusion, Jazz brasileiro e Third Stream. O eJazz, site especializado em música instrumental brasileira classifica o músico como o maior instrumentista brasileiro e um dos seus articulistas, V. A. Bezerra, vai além:

“Maior instrumentista brasileiro? Pode-se ir além. Alguém que ouça as gravações de Victor poderia perfeitamente ser levado a fazer uma afirmativa ainda mais radical: trata-se de um músico do porte de Charlie Parker e John Coltrane — logo, um dos maiores jazzistas de todos os tempos.”

Se a afirmação soa exagerada, ela pode provocar, no mínimo, aquela curiosidade diretamente responsável pela ampliação de nossos horizontes musicais.

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