Quatro lendas do movimento negro, mas apenas Uma Noite em Miami para entender seu local na luta racial

Poster do filme Uma Noite em Miami.... Em primeiro plano temos o quarteto principal do filme. Na ponta esquerda, Jim Brow virado de costas, com a cabeça olhando para trás de relance, usando um terno preto. Ele é um homem de pele negra retinta, barba e cabelo curto preto. Ao lado, Malcolm X, olhando para a frente, com as costas virada para Jim. Ele é um homem de pela negra mais clara, com cabelos mais castanhos, usa óculos quadrado e um terno cinza. A sua direita está Sam Cooke, mais baixo que Malcolm, com um leve sorriso em seus lábios. Ele é um homem negro de pela mais retinta, cabelo preto, terno vinho, e está virado para frente de costas para Malcolm. A sua direita está Cassius Clay, virado com seu corpo para frente de Sam, olhando para a câmera. Ele é um homem negro de pele mais retinta, cabelo preto, musculoso, usando uma calça social cinza, camisa azul e segurando o blazer de mesma cor da calça, com a mão apoiada no ombro. Ao fundo, um típico hotel americano, com palmeiras ao canto da tela, e um pôr do Sol acontecendo.
Kemp Powers, roteirista do filme, está indicado na categoria de Melhor Roteiro Adaptado por Uma Noite em Miami…, além de sua co-direção por Soul, favorito a Melhor Animação (Foto: Prime Video)

Pedro Gabriel

Miami, 1964. Após uma vitória espetacular de Cassius Clay (Eli Goree) sobre o campeão dos pesos-pesados Sonny Liston, um grupo de amigos se junta para comemorar o feito. Essa noite poderia ser apenas mais uma história de diversão, com uma festa regada a bebidas alcoólicas. Mas isso não ocorre. O grupo citado é formado pelo ativista Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), o pai do soul Sam Cooke (Leslie Odom, Jr.), o jogador de futebol americano Jim Brown (Aldis Hodge) e o campeão Cassius Clay, que futuramente seria chamado de Muhammad Ali.

Uma Noite em Miami… desenrola os conflitos entre o quarteto ao discutir suas participações no movimento negro. Enquanto Malcolm X lutava de forma aberta, outras personalidades como Sam Cooke utilizavam de diferentes artifícios, travando uma luta mais silenciosa. Logo no início do filme, há a apresentação dos personagens em situações delicadas, em que sofrem com o racismo nos Estados Unidos. A primeira cena, que traz Jim Brown indo visitar um senhor branco muito rico, dói na alma de assistir, uma vez que ele é muito bem recebido logo de cara, mas, quando oferece uma ajuda, é prontamente impedido de entrar na casa por conta de seu tom de pele.

O filme é uma adaptação da peça homônima escrita por Kemp Powers, que também assina o roteiro do longa. A estrutura da história acaba seguindo os mesmos caminhos de outras produções teatrais, como a também indicada ao Oscar 2021, A Voz Suprema do Blues, e The Boys in the Band. Todos esses filmes trazem uma construção de espaço muito parecida, mesmo que as histórias sejam completamente diferentes. Os cenários são concentrados em apenas um local, o número de personagens é pequeno e os diálogos são extensos e pesados. Cada vez que alguém começa a falar, as palavras são direcionadas para afetar o interlocutor de uma maneira extremamente forte.

Leslie Odom, Jr, homem negro, de cabelo preto, e que usa um terno prata, está em um palco sorrindo, meio inclinado segurando um microfone. Ao fundo, uma orquestra composta por pessoas brancas, vestindo ternos branco, está desfocada. Na base da imagem, pode-se notar a coroa de frutas da Carmem Miranda desenhada no tablado onde a orquestra se posiciona
Leslie Odom, Jr. já mostrou sua voz potente anteriormente, no musical da Broadway Hamilton, como Aaron Burr (Foto: Prime Video)

Toda a estrutura do filme pode não agradar uma grande parcela do público, uma vez que são histórias mais contidas e pontuais, e que, em sua maioria, terminam com finais abertos. No caso de One Night in Miami…, a história é o que promete em seu título — contar o desenrolar dessa noite, cheia de atritos na forma como cada um se relaciona com o ativismo negro e mostrar as fragilidades e diferenças de pensamentos no movimento na época. Nesse ponto, ele consegue seguir um caminho mais fluido que outros filmes baseados em peças. Os diálogos são muito bem construídos, amarrando os desenrolares da história sem parecer que querem colocar dias em apenas uma noite. 

A relação dos personagens, como suas diferenças e ligações, são um ótimo fio condutor. Mas, dentre os quatro personagens, Aldis Hodge acaba ficando ofuscado dentre os demais, uma vez que a atuação de Leslie Odom, Jr. é impecável. O ator mostra os nuances de toda a sua frustação na carreira e na forma como ele atua na manutenção do movimento negro. Não apenas Leslie, mas os demais personagens possuem momentos de maior destaque. 

Eli Goree entrega uma ingenuidade em seu Cassius Clay, que está prestes a se converter ao islamismo, e tem como guru Malcolm X. Inclusive, Kingsley Ben-Adir entrega uma atuação formidável em demonstrar essa figura paternalista, que está atenta a todo momento, e que vive o que luta. O contraponto do seu personagem com o de Sam Cooke movimenta a maior parte das discussões do filme, com diálogos grandes e profundos, deixando claro as divergências, mas aprofundando suas relações.

Eli Goree, ator que faz Cassius Clay, um homem músculos, negro, cabelo preto, usando um terno preto e uma camisa branca, olhando para frente, onde Regina King está apontando. Ela é a diretora do filme, uma mulher negra, com cabelo preto preso em um turbante, ligeiramente menor que Eli Goree, usando uma blusa branca escrita Life is a Party, com brincos de argola dourados. Ao fundo tem uma parede laranja. Acima dessa parede, há uma fileira de cadeiras de madeira, com um homem sentado em uma delas, com apenas as pernas aparecendo.
Regina King é dona de um Oscar pela sua atuação em Se a Rua Beale Falasse (2018), mas sua mais recente premiação foi pela minissérie Watchmen (2019) (Foto: Prime Video)

Mesmo com todos seus acertos no roteiro e nas atuações, o filme poderia facilmente se perder. Mas não é o caso, uma vez que a já premiada Regina King é a diretora desse longa. Esse é o primeiro trabalho da atriz no backstage de uma produção cinematográfica, e já começou o com o pé direito sendo muito elogiada pela crítica. A direção de King consegue situar quem assiste em poucos minutos na realidade dos personagens, com cenas impactantes. 

Além disso, atua com maestria ao emplacar com fluidez os diálogos. As decisões de como festejar, se posicionar, na forma como são vistos pela sociedade, tudo toma uma proporção ideal para a proposta de Uma Noite em Miami…. É conciso e trabalha de forma exemplar a história, que, mesmo sendo fictícia, mantém o peso e importância dessas figuras na sociedade. O que se vê em tela é apenas uma amostra do que viria um ano depois, com o assassinato de Malcolm X. 

A produção foi muito bem recebida nas premiações, com grandes indicações em seu repertório. No Oscar 2021, especificamente, está indicado em três categorias: Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator Coadjuvante para Leslie Odom, Jr. e Melhor Canção Original com Speak Now. Infelizmente, as chances do filme não são as melhores. Em todas as categorias em que foi indicado, a de Canção Original é a mais forte. Nas demais, terá que bater de frente com o favorito para roteiro, Nomadland, e de ator com Daniel Kaluuya, por Judas e o Messias Negro, que tem vencido todas as premiações, inclusive a do Sindicato dos Atores, o SAG Awards.

Aldis Hodge, ator que faz Jim Brown, sendo dirigido por Regina King. Ele é um homem de pele negra, que está com um casaco bege, e com a cabeça abaixada. Em sua frente está Regina King, uma mulher de estatura baixa, pele negra, usando um casaco de couro com pêlos, uma touca, headset, olhando para Aldis. Atrás dela, há uma câmera. Eles estão na casa de uma fazenda, com portas e janelas grandes de madeira durante o dia.
O Prime Video conseguiu emplacar quatro filmes no Oscar 2021, com um total de 12 indicações, sendo três para Uma Noite em Maimi… (Foto: Prime Video)

Mas, o filme merecia mais prestígio em outras categorias. O trabalho de Regina King merecia um lugar entre os indicados a Melhor Direção. Em outras premiações, a diretora foi mencionada, mas no Oscar acabou sendo esnobada. Mesmo que não levasse o prêmio, pela primeira vez na história, a Academia indicaria três mulheres na categoria. Além disso, em Melhor Filme, onde pode-se ter até dez indicações, duas vagas ficaram sem serem preenchidas, dando espaço tanto para Uma Noite em Miami…, quanto para A Voz Suprema do Blues. Entretanto, é gratificante ver o número de filmes sobre os movimentos negros sendo prestigiados, além de artistas negros indicados e com grande probabilidade de vencerem, após alguns anos não terem nenhum concorrente

One Night in Miami… está disponível no Prime Video, juntamente com outros indicados como O Som do Silêncio, Borat: Fita de Cinema Seguinte e Time. A história dessas grandes figuras, festejando em um quarto de hotel com um pote de sorvete pode não agradar a todos pelo seu formato, mas é uma narrativa muito bem construída e que marca a entrada triunfal de Regina King na direção de cinema. 

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