Gabriel Leite Ferreira
Manter-se relevante por mais de três décadas no show business é proeza para poucos. O Sepultura, mais do que ninguém, tem plena noção disso. Do início precário em Minas Gerais ao posto de uma das maiores bandas de heavy metal do mundo e os atritos posteriores, a banda fundada pelos irmãos Cavalera superou barreiras até então intransponíveis – e ainda hoje, sob a batuta do guitarrista Andreas Kisser, não pode se dar ao luxo de se acomodar como outras bandas do segmento. Logo, batizar um documentário sobre a trajetória do grupo como Sepultura Endurance (do inglês “resistência”) é, no mínimo, adequado; o problema é que o material não faz jus à carreira do Sepultura do Brasil.
Sepultura Endurance começou a ser realizado em 2009 e só chegou aos cinemas brasileiros no último dia 14 de junho. A proposta do longa-metragem dirigido por Otávio Juliano é passar a limpo as origens, os êxitos e, claro, as polêmicas que envolvem a maior banda de metal do país – sim, estamos falando da saída dos irmãos Cavalera. De cara, a maior falha do documentário é a ausência de depoimentos de Max e Igor que, segundo os créditos, se recusaram a fazer parte do projeto. Independentemente dos fatores externos, é impossível conceber um filme definitivo sobre a banda sem a contribuição dos dois membros fundadores. Ainda que a questão seja discutida por Andreas sem rodeios, o sentimento de que falta algo persiste; as poucas imagens de arquivo com Max são sintomáticas.
Antes fosse essa a única deficiência do documentário. Na primeira parte do filme, o diretor frequentemente contrasta imagens da formação clássica e da formação atual, no que parece ser uma tentativa de opor passado e presente que só faz prejudicar a coesão narrativa do produto. Nem mesmo os entrevistados contribuem nesse quesito. Há falas de gente como Lars Ulrich (Metallica), Scott Ian (Anthrax), Dave Ellefson (Megadeth) e Corey Taylor (Slipknot, Stone Sour), mas o discurso inevitavelmente cai em elogios desmedidos, daqueles que se ouve de um aficionado. Não há uma preocupação com fatos ou curiosidades, elementos primordiais em qualquer documentário. Os bastidores da saída do baterista Jean Dolabella em 2011, por exemplo, limitam-se a uma conversa exageradamente longa entre os membros da banda no ônibus da turnê. Não é sequer dado espaço suficiente para o ex-membro discutir os motivos que o levaram a abandonar o barco, apenas alguns segundos de fala e, então, mais um festival de elogios ou imagens aleatórias do dia-a-dia da banda.
A segunda metade trata da carreira do Sepultura desde a formação, em 1984, à era Derrick Green, o substituto de Max. Há entrevistas com antigos colegas de Belo Horizonte e até mesmo com Jairo Guedes, o primeiro guitarrista, e só então o público é agraciado com informações instigantes, ainda que nada fuja do óbvio – só falta mesmo o parecer dos dois irmãos. Há que se destacar a participação de João Gordo (Ratos de Porão), uma das figuras mais carismáticas de sempre. Sua vivência ao lado da banda na década de 1980 é valorosa, e é lamentável que suas falas tenham sido cortadas em prol das observações redundantes de Phil Campbell (Motörhead) e Phil Anselmo (Pantera, Down).
O fato de os melhores momentos de Endurance se concentrarem no passado do Sepultura diz muito sobre a própria condição da banda na atualidade. A saída repentina de Max em 1996 abalou brutalmente as estruturas do grupo. Andreas não economiza nas acusações, deixando explícito que o ex-colega levou com ele toda a estabilidade que o Sepultura havia conquistado até aquele momento, isto é, a confiança da gravadora major Roadrunner e a empresária Gloria Cavalera. À época, a sensação era de que o Sepultura estava prestes a dominar o mundo e Max tinha posto tudo a perder. É aí que a resistência do título fica ainda mais palpável: foi preciso recomeçar literalmente do zero, sem apoio de gravadora ou perspectiva de futuro. Hoje, vinte anos após o fim da formação clássica, é possível dizer que a banda se reergueu, ainda que se mantenha rentável somente por conta dos tempos áureos. Não à toa, apenas um álbum pós-Roots é devidamente abordado (Against, de 1998).
Vale mencionar, também, as gravações do show de 30 anos distribuídas ao longo do documentário, registros de um notável primor técnico. Pois, ainda que a banda já não seja relevante do ponto de vista artístico, os shows continuam impecáveis. A inclusão de faixas fora do rol dos clássicos – na estreia, houve dois bônus após os créditos: “Kairos” e “Convicted in Life” – salienta a intenção de consolidar a imagem de que o Sepultura superou os irmãos Cavalera, o que passa bem longe da verdade.
No fim das contas, Sepultura Endurance se revela mais um exercício de autoafirmação pela metade do que um registro definitivo da carreira da maior banda de metal da América do Sul. Mesmo que tente desvelar a grande polêmica dos envolvidos com limitações óbvias, perde muito nos quesitos edição e informação, principalmente em sua primeira metade. Ao menos uma coisa é unânime: é de se admirar a garra com que Kisser levanta a bandeira do Sepultura, mesmo após mais de 30 anos aos trancos e barrancos. Refuse, resist!