O Segredo de Joe Gould: Sobre a força de um texto

Livro reúne os dois perfis que Joseph Mitchell escreveu para a New Yorker sobre o mendigo culto Joe Gould

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Joe Gould chamava a atenção por suas duas personas extremas: a de escritor culto e emprenhado e a de bêbado exibicionista. Créditos: Culver Pictures.

Lucas Marques

As páginas de O Segredo de Joe Gould (Companhia das Letras) revelam um ilustre conto real sobre a passagem do tempo e a memória. O livro reúne dois perfis jornalísticos escritos por Joseph Mitchell, para a revista New Yorker, sobre o mendigo boêmio Joe Gould – um de 1942 e outro em 1964, após a morte do perfilado. Gould perambulava as ruas de Nova York escrevendo “A História Oral de Nosso Tempo”, o livro que contaria a história contemporânea através de conversas mundanas escutadas pelo autor. Tal empenho chamou a atenção de diversos intelectuais e na escrita de Mitchell se tornou um trabalho jornalístico irretocável.

O primeiro perfil, O Professor Gaivota, descreve Gould e todas suas particularidades em um texto conciso, polido, mas não menos envolvente. Entre os nomes mais conhecidos do jornalismo literário norte-americano, Mitchell se aproxima muito mais da linguagem objetiva e precisa de Gay Talese do que a eloquência de Hunter S. Thompson e Thomas Wolfe.

A graça da reportagem é descobrir, aos poucos, o passado de Gould como rico e intelectual da Harvard; a habilidade que julgava possuir de falar a língua das gaivotas – daí o apelido “Professor Gaivota”; a relação de fascínio, tolerância e ódio com a comunidade artística nova-iorquina; e principalmente tudo o que tange “A História Oral da Humanidade”.

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Mitchell era uma pessoa que vivia em um ritmo vagaroso, em oposição a rapidez de sua querida Nova York. Créditos: Therese Mitchell.

Mitchell veio dos campos do sul dos EUA para a grande metrópole e, desde o início de sua carreira na New Yorker na década de 30, se delegou a escrever sobre pessoas, lugares e fatos que, mesmo a margem da sociedade, eram difíceis de serem ignorados. Ao narrar sobre a vida de uma mulher barbada de circo ou sobre um bar, Mitchell mostrava que esses “pequenos temas” mereciam um registro.

No segundo texto, O Segredo de Joe Gould, Mitchell parte da morte do boêmio para reescrever a história e acrescentar informações das mais de duas décadas de convivência com Gould. O mote do novo perfil, quatro vezes maior que o primeiro, é a procura pelos cadernos contendo “A História Oral”.

Para contar novamente a história de Gould, Mitchell traça uma estratégia inteligente e pessoal. Em primeira pessoa, o jornalista conta como tivera a ideia do perfil e as primeiras conversas que travou com a personagem. Tudo isso em um ritmo lento, permitindo que os laços entre entrevistador e entrevistado se fortaleçam gradativamente.

Apesar de empregar um tom bem mais pessoal, Mitchell não abre mão do estilo jornalístico, da escrita econômica. Ao descrever as conversas com Gould e seus amigos, o autor revela o processo de reportagem usado no primeiro perfil ao mesmo tempo que é completamente entendível e interessante para quem não tenha lido o original.

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Intitulado de Crônica de uma Certa Nova York, o livro recebeu uma adaptação cinematográfica estrelada por Ian Holm e Stanley Tucci em 2000.

Mas o que torna O Segredo de Joe Gould singular é o relato da influência de O Professor Gaivota na vida de Mitchell e Gould. O autor da “História Oral”, um livro destinado as gerações futuras, viveu satisfeito sabendo que, pelo menos, estava eternizado nas páginas da New Yorker.

O primeiro perfil ligou a vida dos dois até a morte de Gould – mais pessoas o reconheciam e o ajudavam e ambos firmaram uma estranha amizade. O mais curioso é que O Segredo de Joe Gould foi a última reportagem de Mitchell – o escritor continuou como empregado da New Yorker durante 30 anos sem escrever um texto, mas nunca deixando de sentar na sua escrivaninha e teclar a máquina.

Como poucos, Mitchell reconhecia a força de um texto, ou melhor, de um registro histórico. A começar pela “História Oral”, cada registro modificou também o momento presente e o futuro. Assim como Gould, Mitchell era conhecido pela demora e perfeccionismo em sua produção, de modo que seus editores o bancavam mesmo assim, justamente porque compreendiam a força de sua escrita. Força esta que, fatalmente, impediria Mitchell de escrever pelos anos vindouros.

Permeando a obra, está também a relação entre mito e realidade. Mitchell apresenta o mito, mas o humaniza a ponto de mostrar suas partes mais abjetas. A opção da realidade, mas o fascínio pela mitologia, reverberam no belo texto de João Moreira Salles no posfácio da edição.

 

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