Gabriel Leite Ferreira
O dia 2 de julho de 2005 marcou a primeira vez em mais de 20 anos em que a formação clássica do Pink Floyd se reuniu em um palco. Roger Waters, David Gilmour, Richard Wright e Nick Mason se apresentaram na edição britânica do Live 8, série de eventos beneficentes ao redor do globo. Foi o último show dos ídolos máximos do rock progressivo. Se tal ocasião foi tão simbólica, é por conta do clássico The Dark Side of the Moon.
Desde o lançamento original em 1973, muito já se falou sobre o oitavo álbum de estúdio dos ingleses: a produção impecável, as composições sóbrias, a capa icônica, o conceito preciso. Uma das obras mais acessíveis do controverso rock progressivo, Dark Side funciona como uma só peça dividida em dez partes que somam apenas 40 minutos – um ponto fora da curva do subgênero famoso pelas faixas quilométricas, que não raro ocupavam um lado inteiro dos discos de vinil. O formato ousado saiu da mente do baixista Roger Waters, autor de todas as letras e de grande parte do instrumental. Mas, enfim, disso todo mundo sabe. Afinal, o que resta para se falar sobre a obra-prima do Pink Floyd 45 anos depois?
Como a grande maioria dos grupos clássicos de rock dos anos 70, Waters e companhia passaram por crises nas décadas de 80 e 90. O estouro do punk tornou as longas suítes virtuosas obsoletas para a juventude, estigma que se arrastou indefinidamente até a consolidação do pós-rock nos anos 2000. O revisionismo veio e o Floyd manteve seu lugar no cânone setentista com louvor, influência óbvia para nomes como Godspeed You! Black Emperor, Arcade Fire e Radiohead – na mídia especializada, é comum classificar OK Computer como o The Dark Side of the Moon dos anos 90. Diante disso, parece justo analisar o aniversariante do mês a partir de sua universalidade.
De cara, o que mais chama atenção é a duração compacta. Apenas três faixas ultrapassam os cinco minutos e nem mesmo estas apresentam grande complexidade – o que não quer dizer que não sejam peças de um primor técnico impressionante. Aqui, o grande trunfo do grupo foi trocar composições extensas por canções recheadas de detalhes, mas sem perder o apelo comercial. Prova disso é que o single de maior sucesso foi “Money” com seus pouco mais de seis minutos. Para compreender totalmente a dimensão desse feito, é preciso conhecer a trajetória do Floyd pré-1973.
A carreira dos ingleses se fundou, desde cedo, no trauma. O primeiro líder da banda era Syd Barrett. Guitarrista de mão cheia, ele dominava as composições e o microfone. Feito sob sua batuta, The Piper at the Gates of Dawn (1967) foi um sucesso expressivo no Reino Unido e apontava bons – e psicodélicos – horizontes para os rapazes. Lamentavelmente, Syd logo foi engolido pelo LSD de tal maneira que se tornou incapaz de contribuir novamente para seu próprio grupo.
Exemplos de bandas que perderam integrantes fundamentais e nunca se recuperaram do baque são vastos e, a princípio, não foi diferente com o Pink Floyd. Apesar do ritmo de lançamentos ter se mantido, é notável a dificuldade para preencher a lacuna de Barrett. Entre 1968 e 1971, já com o guitarrista David Gilmour, o quarteto passeou pela psicodelia de garagem em A Saucerful of Secrets, por nuances acústicas na trilha sonora More, pela experimentação indiscriminada em Ummagumma e pelo rock progressivo irreverente em Atom Heart Mother, até estacionar em abordagens mais diretas com Meddle. Nenhum desses álbuns é de qualidade inferior, mas a falta de um direcionamento explícito afeta o produto final.
É curioso perceber que, a despeito de ser um álbum mais enxuto, Meddle não apontava tamanha reviravolta sonora. A monumental “Echoes” representou um passo adiante para o grupo, contudo, tem pouco a ver com a fluidez de Dark Side. Não à toa, o tecladista Richard Wright afirmou: “Mesmo que tenha sido tão bem-sucedido, [The Dark Side of the Moon] foi feito da mesma maneira que todos os nossos álbuns.” Mas havia a ambição de Waters, que gradualmente tomava as rédeas da banda. E, porque não, o acaso.
Pode soar preguiçoso, mas a repercussão estrondosa do oitavo álbum do Pink Floyd parece ter sido um daqueles raros casos de “na hora e no lugar certos.” Levando em conta toda a carreira da banda até aquele momento, os picos e vales de cada trabalho e a naturalidade com que Wright fala sobre o processo criativo, dificilmente eles imaginavam o que estava por vir. Talvez apenas Waters tivesse uma perspectiva mais ampla – esse foi o primeiro de uma série de discos conceituais, todos idealizados pelo baixista. Ainda assim, The Dark Side of the Moon não é de uma grandiosidade intimidadora, e isso se deve ao conceito e à execução precisas.
De modo geral, Dark Side lida com as principais questões da existência moderna: vida, morte, ansiedade, dinheiro, guerras, drogas e saúde mental. Cada música aborda alguma dessas temáticas e todas elas são ligadas por interlúdios – de fato, faz mais sentido pensá-lo como uma só canção. O conceito é generalista e as letras são relativamente simples, sem as metáforas sinestésicas dos discos passados, o que é um ponto positivo por dialogar com os instrumentais calculados.
A vibe cinematográfica do disco rendeu diversas teorias mirabolantes, como uma suposta sincronia entre as músicas e o filme O Mágico de Oz (1939), desmentida pela banda
Entra aí outro aspecto primordial: a influência do cinema. Ao abandonar a sinestesia lírica, o quinteto utilizou ainda mais sintetizadores, loops de fita e coros para incrementar sua narrativa. A primeira música, “Speak to Me” faz uso de trechos que aparecerão posteriormente no disco, como os sons de caixa registradora de “Money” e os vocais de “The Great Gig in the Sky”, tal qual um trailer diminuto. Em seguida, “Breathe” introduz o primeiro tema – “Tudo o que você toca e tudo o que você vê / É tudo o que sua vida sempre será” –, o qual vai ser retomado na faixa final, “Eclipse”: “E tudo o que você toca e tudo o que você vê / Tudo o que você experimenta, tudo o que você sente.”
Essa ideia cíclica é o alicerce onde a banda constrói cada peça do lado escuro da lua. A instrumental “On The Run” dá a sensação da velocidade cotidiana, proposta muito semelhante à clássica “Autobahn”, do Kraftwerk. “Time”, então, nos lembra que não adianta “correr para alcançar o sol” quando o único destino certo é a morte, simbolizada na pungente “The Great Gig in the Sky”, cantada por Clare Torry.
O lado B tenta repelir essa ideia com a dançante “Money”, mas não por muito tempo: as sombras voltam em “Us and Them”, retrato das guerras em nome do lucro. Então, como num desvario, a instrumental “Any Colour You Like” acena para as viagens psicodélicas dos primórdios e abre alas para “Brain Damage”, homenagem direta a Syd Barrett.
Diante de um leque temático tão vasto, é fácil entender a escolha por composições mais retas e instrumentais pouco ou nada agressivos. “Time” tem um Gilmour furioso no vocal e na guitarra, e mesmo assim começa soturna. Do mesmo modo, “Us and Them” explode no refrão, o momento mais cinematográfico do álbum, para abaixar as frequências logo em seguida. Essa calmaria parece nos dizer: “a vida é frágil, pare, respire, ou então perca a cabeça.” Para citar um dos interlúdios, sequer existe um lado escuro; a lua é negra por inteiro.
A mensagem é simples e desesperadora. Waters questiona a racionalidade moderna de maneira direta até os últimos momentos de The Dark Side of the Moon. Porém, “Eclipse”, os créditos finais, é um encerramento otimista. De novo, a acessibilidade dando os toques finais em uma obra que nasceu universal. Nem mesmo o próprio Pink Floyd ficou imune: o sucesso levou o baixista às alturas e dez anos depois ele abandonaria o barco amargamente. Gilmour ainda manteve o nome ativo até 1994, mas sem o brilho dos tempos áureos. A vida é mesmo frágil.