O Garoto Mais Bonito do Mundo é o mais triste também

Cena do documentário O Garoto Mais Bonito do Mundo. Em preto e branco, mostra um garoto branco e loiro escondido atrás de uma cadeira de set de gravações. Nas costas da cadeira, está escrito L. Visconti, o nome do diretor.
Analisando o impacto da fama na vida de uma jovem estrela, o documentário faz parte da Perspectiva Internacional da Mostra de SP (Foto: Films Boutique)

Vitor Evangelista

1971. Luchino Visconti. Morte em Veneza. Björn Andrésen. A receita para o sucesso pode, em adição, conter os mesmos ingredientes de um trauma que se alonga por uma vida inteira. O Garoto Mais Bonito do Mundo, documentário sueco que integra a Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, tem em seu cerne a ferida aberta que a fama e o estrelato podem causar nesse alguém ainda em processo de formação.

No início dos anos 70, o cultuado diretor Luchino Visconti colocou em prática a ideia de dar vida a Morte em Veneza, adaptação da obra de Thomas Mann que entraria para a história do Cinema, com abertura e aclamação massiva em Cannes do mesmo ano e vendido em cima da figura angelical de Björn Andrésen, à época com menos de dezesseis anos. 50 anos depois, o mesmo Björn relembra os bastidores da ascensão meteórica de seu rosto e corpo, e como os vestígios de abuso moldaram seu eu de hoje, um homem de sessenta e seis anos, quebrado em todos os sentidos da palavra.

A introdução histórica, com amplo uso de imagens de arquivo, situa com maestria o documentário comandando pela dupla Kristina Lindström e Kristian Petri, mas o que o filme tem de base complementar, ele carece de foco estrutural. O que, por ora, joga a favor da obra. Ao salpicar filmagens antigas do menino, intercalando com imagens cruas do velho de hoje, os diretores ganham pela simpatia.

Cena do documentário O Garoto Mais Bonito do Mundo. Mostra um homem idoso, de cabelos brancos e barba branca, compridos, parado próximo ao mar. Ao fundo, vemos a água azul.
O ator é mostrado no set de Midsommar, onde interpretou o papel do idoso que se joga do penhasco em um dos rituais mais brutais do filme de Ari Aster (Foto: Films Boutique)

É impossível não simpatizar com o tal Garoto. Seu olhar ávido e estupefato dos anos setenta entra em conflito com as íris escurecidas e tristes da década de vinte. E muitos são os fatores que fizeram-no cruzar essa ponte da depressão e da falta de cuidado próprio. Como sua namorada exclama nos minutos iniciais, ele mal sai de casa, muito menos recebe ninguém há anos no maltrapilho apartamento e prefere o silêncio à conversa

Filmando Andrésen calmo, sozinho e vestido com casacos elegantes e escuros, em contraste com o penteado de Papai Noel nórdico, a cinematografia de Erik Vallsten deita e rola no jogo de imagem e som do ontem e do hoje. O idoso narra, fora da câmera, como foi a experiência de virar um símbolo sexual, de luxúria e desejo antes mesmo de atingir a maioridade, narrando absurdos, agora enfrentados como dragões medievais, sob o timbre grosso e a presença diminuta do homem. 

Até que ponto a influência de um diretor famoso pode massacrar a vida de um jovem ator? Até que ponto a família pode intervir? Björn, órfão desde cedo, não encontrou na avó a proteção que necessitava, seguindo todas as ordens de Luchino Visconti, o diretor que imortalizou o ator. Hoje, aos 66 anos, o Garoto tem a mesma idade que Visconti tinha quando o escalou no século passado. Na pele de Tadzio, o filme nos mostra sua primeira audição, onde teve de tirar a roupa a fim de Visconti poder julgar se aquele era o intérprete ideal.

Cena do documentário O Garoto Mais Bonito do Mundo. Mostra o close no rosto do garoto, branco e louro, que olha para a câmera e sorri.
Sensível e extremamente respeitoso com a figura do Garoto, o filme abre debates importantes para o Cinema do século XXI: até quando vamos sexualizar figuras infantis? Qual o limite do inaceitável? (Foto: Films Boutique)

Os moldes eurocêntricos de beleza, cabelos loiros áureos, olhos cinzentos e a pele branca como leite, com bochechas rosadas e um maxilar pontiagudo, venderam o Garoto como o símbolo inalcançável de perfeição. Tão longe do resto dos mundanos, que ele próprio voou perto demais do Sol. A comunidade gay da época, em especial a equipe de produção comandada pelo diretor assumidamente homossexual, era descrita como desejando Björn, comendo-o com os olhos.

Visconti assegura que ninguém, de fato, tocou o menino, mas a pressão de ficar seminu num set de gravações daquele já foi mais que o bastante para que Björn crescesse rodeado de complexos e medos. Tanto é que muitos dos problemas nascidos no processo de virar adulto só são adereçados na terceira idade, e capturados pelo olhar da segura dupla que dirige The Most Beautiful Boy in the World

Sua predileção pela fuga dos confrontos nas brigas com a namorada preenchem o miolo do filme, que se estende por menos de cem minutos. Sobra espaço para Björn mergulhar no mistério do assassinato da mãe, na sequência mais desoladora da rodagem, onde choramos junto dele. É tarde demais para que os erros sejam desfeitos, mas a existência de longas como esse são fator importante para que a história não se repita. Na era em que os Lolitos são atacados sem pudor, respeito ou responsabilidade, O Garoto Mais Bonito do Mundo rasga as dores de um arquétipo passado, mas que, independente de quantos penhascos pule em direção à libertação, nunca cicatrizará suas marcas. 

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